Num país em que 99% das pessoas dizem crer em Deus e mais de 80% acreditam na vida eterna e no paraíso, falar de Jesus (contra ou a favor) é garantia de “ibope” na certa. Mesmo revistas de orientação científica têm-se aventurado pelos meandros da fé e publicado matérias de cunho religioso.
Um bom exemplo é a matéria de capa da revista Superinteressante de dezembro de 2002, edição que alcançou uma vendagem de 220 mil exemplares em banca, batendo seu recorde histórico. A segunda capa mais vendida (julho de 2002), da mesma publicação, abordou (ou detonou) a Bíblia, e vendeu 162 mil exemplares.
A revista Época do dia 14 de abril de 2003 estampou na capa o título “A família de Jesus”. Na matéria é mencionado, dentre outros, o livro Tiago, Irmão de Jesus, de Pierre-Antoine Bernheim, que contesta o dogma da perpétua virgindade de Maria e assegura que essa não é afirmada em nenhuma passagem do Novo Testamento. Neste caso, Bernheim acerta em cheio, já que a mídia freqüentemente confunde dogmas com informações bíblicas e mistura a crença de algumas religiões (geralmente a católica) com o que ensina o cristianismo bíblico.
A matéria menciona também o livro Mãe – A História de Maria, no qual se relata a história da parteira Salomé, que teria queimado a mão ao tentar constatar a virgindade da mãe de Jesus. Responsável pela compilação do volume, a editora Júlia Bárany diz que adotou como fonte principal para contar essa e outras histórias o Proto-Evangelho de Tiago, um apócrifo do século 2 teoricamente escrito pelo discutido irmão de Jesus.
Já em O Evangelho Secreto da Virgem Maria, livro do padre católico espanhol Santiago Martín, é dito que Maria teria concebido Jesus numa gruta (e não num estábulo, como narram os evangelhos canônicos), antes mesmo de seu casamento com José. Provas, que é bom, nada.
Ainda no evangelho apócrifo de Maria, ela chega a desconfiar das visões do Filho. Nele, a mãe de Jesus conta que o primeiro contato de Cristo com a morte foi aos 6 anos, ao ver o “avô” Joaquim no sheol, o lugar dos mortos dos judeus.
** PAUTA NATALINA
Em dezembro de 2003, duas outras revistas trouxeram como matéria de capa a história de Jesus. A já citada Superinteressante, como geralmente faz quando se aventura em temas de fé (um verdadeiro desvio de sua proposta editorial original de ser uma revista científica, como bem o sabem aqueles que a acompanharam quando de seu lançamento há uma década e meia), estampou um título nem um pouco modesto em sua capa recordista: “A verdadeira história de Jesus.” A outra revista foi a Veja, com a chamada “O que Ele tem a dizer a você hoje”, cuja matéria se mostra bem mais ponderada.
Mas falemos antes do texto da Super. Logo de início, o artigo afirma que “além dos evangelhos – que não podem ser considerados fontes imparciais de sua [de Jesus] vida, já que foram escritos por Seus seguidores – há apenas uma menção direta a Ele, citada pelo historiador judeu Flávio Josefo, que escreve sobre Sua morte no livro Antiguidades Judaicas, feito provavelmente no fim do século 1”.
No entanto, adiante, o texto menciona a história de Paulo, relatada no livro de Atos, cujo autor é Lucas, e a aceita como verídica. Fica no ar a pergunta: Quando se deve aceitar ou descartar um texto bíblico?
Ainda na mesma matéria se questiona o nascimento de Jesus em Belém, afirmando-se que Ele teria nascido, na verdade, em Nazaré. Diz-se, também, que a execução dos recém-nascidos por Herodes, a fuga de Maria e José para o Egito e a existência dos sábios do Oriente não passam de invenções acrescentadas pelos evangelistas, ou uma “licença poética”, como traz o texto. É a moda contestatória aí, de novo.
Citando o professor de Teologia e Filosofia da Universidade Metodista de São Paulo, Gabriele Cornelli, a Super informa que, tendo como base as parábolas de Jesus, Ele muito provavelmente teria sido um camponês e não um carpinteiro. Isso significa que o médico Drauzio Varella, por exemplo, teria sido um detento, pelo fato de ter escrito um livro tão detalhado sobre o dia-a-dia na antiga casa de detenção do Carandiru? Jesus falava para (entre outras pessoas e grupos sociais) os camponeses, e como bom Mestre que era, usava informações do cotidiano deles.
A matéria da Super ignora ainda o contexto espiritual da pregação de Cristo (o que não se deve fazer, considerando-se quem Ele é) ao sugerir que Ele teria iniciado Sua pregação motivado por um sentimento de injustiça social em relação à opressão romana. E diz, também, que muitos curandeiros realizavam curas como um ato subversivo em relação ao poderio do templo judaico. Qualquer leitor da Bíblia sabe que Jesus enfatizou a paz (dê a César o que é de César; dê a outra face ao que lhe bater; e por aí vai) e sempre Se referiu a Seu reino como não sendo deste mundo.
A bem da verdade, é preciso que se diga que a Superinteressante, nessa matéria em análise, faz uma boa descrição sobre o tempo e os hábitos de vida na época de Cristo. Mas ao apresentar diferentes opiniões sobre Jesus – como no caso em que um estudioso afirma ter sido Ele analfabeto e outro diz o contrário – evidencia ter escolhido o título para a capa levando em conta mais a publicidade do que o jornalismo. Afinal, qual a verdadeira história de Jesus? Nem eles respondem.
** IMPARCIALIDADE RELATIVA
No caso da revista Veja, é feita uma verdadeira retrospectiva da história do cristianismo, afirmando-se, inclusive, que “o cristianismo trouxe uma nova moral a um mundo saturado de crueldade casual e de paixão pela morte alheia... Uma moral que conferiu aos homens sua humanidade e na qual a virtude é a sua própria recompensa – sob cuja égide ainda vivemos, independentemente de crença”.
No texto “A ciência à procura de Cristo”, da mesma edição, é dito que se descobriu “mais sobre Jesus Cristo nos últimos trinta anos que nos dois mil anteriores. O que se tem de novo é uma impressionante coleção de objetos e documentos que coincidem com os relatos bíblicos e que ajudam a dar contornos mais nítidos à figura histórica de Jesus”. Constatação simples, sem preconceitos e bem-vinda.
Infelizmente, a despeito da relativa imparcialidade da Veja de dezembro, o ponto comum em todas as matérias citadas (e em quase tudo o que a mídia secular publica sobre Jesus), é o peso maior dado às declarações dos especialistas (quase sempre de orientação humanista) e aos livros escritos sobre Jesus, em detrimento das próprias palavras de Jesus, registradas nos evangelhos – estes sim, geralmente questionados quanto à sua veracidade histórica.
Quem tiver interesse, pode encontrar muitos livros que, baseados em evidências históricas, confirmam o relato bíblico sobre a figura divino-humana de Cristo. The Case for Christ (publicado no Brasil pela Editora Vida, sob o título Em Defesa da Fé), do ex-jornalista do Chicago Tribune, Lee Strobel, é um desses. Strobel, que era agnóstico, não acreditava na Bíblia nem no cristianismo, mas em certo momento de sua vida resolveu empreender uma pesquisa jornalística (tentando ser o mais neutro possível) em busca das evidências pró e contra as Escrituras. E fez isso por dois anos, até que se convenceu da historicidade do Filho de Deus e tornou-se cristão.
The Essential Jesus, editado por Bryan W. Ball e William G. Johnsson (Pacific Press) é outro ótimo livro sobre a vida e a época de Jesus. Trata-se, na verdade, de uma coletânea de textos de 12 estudiosos, cujo propósito básico é demonstrar que “o Jesus histórico e o Jesus da fé são o mesmo Jesus” (pág. 15).
Lamentavelmente, livros assim são arbitrariamente excluídos pela mídia secular, quando se trata de analisar a vida do Filho do homem.
** NA ONDA DOS APÓCRIFOS
Atualmente também há uma onda de pesquisa nos chamados livros apócrifos. O problema é que, ao contrário da uniformidade e coerência observadas nos 66 livros canônicos, os apócrifos apresentam diversas discrepâncias em relação aos livros bíblicos. Por exemplo, o livro Sabedoria, que consta no cânon católico, faz referência ao purgatório, algo totalmente inexistente nas Escrituras e em desacordo com seus preceitos em relação ao estado do ser humano na morte (cf. Sal. 6:5; Ecles. 9: 5 a 10).
No livro apócrifo de 2º Macabeus, capítulo 12, versos 42 a 46, há uma referência à oração pelos mortos, que pode ser contrastada com o canônico Isaías, capítulo 38, versos 18 e 19. Anjos bons aparecem mentindo em Tobias, capítulo 5, versos 10 a 14, livro que também diz que órgãos de peixes podem espantar demônios! (Tob. 6:5-8.)
Os apócrifos foram incorporados à tradução da Bíblia para o latim (a Vulgata Latina) e decretados canônicos pelo Concílio de Trento, em 8 de abril de 1546. Têm seu valor histórico, mas não podem ser considerados canônicos (e os que pensam diferente deveriam ler as desculpas apresentadas pelo autor de 2º Macabeus, no capítulo 15, verso 37; algo muito estranho para um autor que se considera inspirado dizer).
O que se percebe é que ainda hoje, dois mil anos depois, Cristo continua sendo alvo de controvérsias, ficando as coisas quase sempre na base do dito pelo não dito. Mas uma coisa é certa: o personagem mais conhecido da História continuará, com certeza, a render boas pautas.
Michelson Borges