quinta-feira, maio 01, 2008

A fraude do Microraptor gui

O célebre dinossauro chinês de quatro asas que deixou os cientistas boquiabertos ao ser apresentado, dois anos atrás, provavelmente não passa de uma fraude.

A acusação foi feita por um pesquisador americano e abre na academia um debate sobre honestidade intelectual, tráfico de fósseis e colonialismo científico ocidental.

O paleontólogo Tim Rowe, da Universidade do Texas em Austin, declarou à Folha que o fóssil do Microraptor gui – considerado uma das maiores descobertas científicas de 2003 – foi habilmente forjado a partir de restos de duas espécies de dinossauro e uma de ave. E enganou até os editores de uma das principais revistas científicas do mundo, a Nature (www.nature.com), que publicou o achado em sua capa.

"Acho que esse artigo precisa ser desmentido", disse Rowe, em entrevista no laboratório de tomografia computadorizada de fósseis por raios X da universidade, que ele dirige.

O americano entende de fraudes paleontológicas. Foi ele quem desmontou, em 2000, a farsa do Archaeoraptor [que foi capa de revistas como a National Geographic], outro fóssil chinês, trombeteado no final dos anos 1990 como o elo perdido entre dinossauros e aves – e que acabou entrando para a história como a maior falsificação da paleontologia moderna.

A tomografia computadorizada do Archaeoraptor mostrou que o fóssil foi montado com a cauda de um pequeno dinossauro predador e o corpo de uma ave, colados em um pedaço de rocha por contrabandistas de fósseis chineses.

Rowe diz acreditar que o mesmo tipo de montagem tenha sido feito no caso do Microraptor gui.

"Não consigo ver associação entre a parte anterior do fóssil [onde está a cabeça] e a posterior [onde está a cauda]", disse o cientista.

A espécie, descrita por uma equipe chinesa liderada por Xing Xu, hoje no Museu Americano de História Natural, em Nova York, é considerada uma descoberta revolucionária por causa das penas longas não só nos braços ("asas") como também nas pernas.

Nela estaria a resposta a um dos grandes enigmas da evolução: como as aves, que descendem dos dinossauros [conforme a concepção evolucionista], aprenderam a voar.

Xu e seus colegas teorizaram que as penas do M. gui o habilitariam a saltar entre árvores com vôos curtos, planados, como fazem hoje alguns esquilos.

Com imagens do fóssil do artigo original da Nature abertas na tela de seu computador, Rowe vai apontando o que ele chama de "discrepâncias" no M. gui:

"As fibras das penas não parecem continuar depois da fratura na rocha. E há uma diferença clara de densidade entre rochas que contêm diferentes partes do fóssil", afirma.

"Mas o que eu acho mais enervante é isso aqui." Rowe aponta, então, para uma fratura na rocha na fotografia do fóssil. Na tomografia, ao lado, a mesma fratura parece apagada.

"Eu não consigo explicar, pelas leis da física, como uma fratura pode aparecer numa foto e desaparecer numa tomografia. Mas posso explicar pelas leis da natureza humana. Isso parece Photoshop para mim", afirma, referindo-se ao software que permite manipular imagens digitais.

Rowe diz que convidou Xu duas vezes para trazer o espécime para ser tomografado em Austin. A alta resolução do aparelho da universidade permitiria sanar quaisquer dúvidas. "Eu me ofereci para pagar todos os custos da viagem e o exame. Ele não aceitou."

Rowe diz que alertou o editor da Nature Henry Gee sobre a possível fraude. Gee disse não ter "nada definitivo" sobre o assunto.

Procurado pela Folha de S. Paulo, Xu disse que não se recusou a levar o espécime para Austin. "O que aconteceu foi que, na primeira vez que ele fez o convite, eu estava atrapalhado me mudando para os EUA. Na segunda vez, o fóssil estava no Japão, e eu não iria tirá-lo da exposição. Ele não é meu chefe. Não sou obrigado a levar o espécime a Austin. Ele não teve paciência, o que me deixa meio com raiva."

O pesquisador, de 34 anos, que descreveu e batizou vários fósseis espetaculares de dinossauro emplumado da região de Liaoning, China, afirma não ter dúvidas sobre a autenticidade do M. gui. Ele diz que, se alguém tem evidências em contrário, pode se sentir à vontade para publicá-las num periódico científico – o que Rowe não fez.

"A tomografia computadorizada pode ser útil para obter informação sem danificar o espécime, mas também é verdade que a densidade de um único pedaço intacto de folhelho [tipo de rocha que contém os fósseis do M. gui] pode mudar dramaticamente."

Ele afirma ter visto esse padrão de preservação em pelo menos 15 espécimes de Liaoning.

** MUNDOS EM CHOQUE

Xu acusa os paleontólogos norte-americanos de tentarem monopolizar o campo e de não aceitarem o trabalho de cientistas do Oriente. "Eles tentam dizer: 'Este é nosso campo, nós sabemos tudo sobre ele e se você não tem as nossas técnicas, você está errado.'"

Rowe diz que as visões ocidentais e orientais de padrões científicos podem ser reconciliadas pelas novas tecnologias de imagem. Xu rebate: "A máquina dele vai ser juiz da autenticidade do meu espécime? Acho que não."

(Publicado na Folha de S. Paulo, de 8/10; o autor do texto, jornalista Claudio Angelo, viajou a Austin a convite da Sociedade de Jornalistas Ambientais [SEJ] dos Estados Unidos)