domingo, maio 04, 2008

Estado laico não é Estado ateu e pagão

Desde a Constituição de 1824, os Textos Magnos pátrios consagram o princípio da liberdade religiosa, o que se dá amplamente a partir da Carta Republicana de 1891. O Estado laico, longe de ser um Estado ateu - que nega a existência de Deus -, protege a liberdade de consciência e de crença de seus cidadãos, permitindo a coexistência de vários credos. Aliás, é princípio fundamental do cristianismo e muito precioso aos católicos, que compreendem a parcela maior dos brasileiros, o profundo respeito à liberdade religiosa de cada um, como bem se afirma na declaração "Dignitatis Humanae", do Concílio Vaticano 2º.

As Constituições brasileiras fazem expressa menção, em seus preâmbulos, à confiança depositada em Deus (1934), colocando-se sob sua proteção (1946) ou afirmando o amparo divino, como pouco humildemente se fez em 1988.

Essa percepção da importância de Deus como fundamento de uma sociedade fraterna radica na indissociável conexão entre a história, a cultura e o próprio Criador, o que é imprescindível à elaboração de políticas públicas que não colidam com a liberdade religiosa nem desrespeitem a profunda religiosidade dos brasileiros.

Daí a enorme distância entre o pluralismo religioso do Estado laico e um Estado ateu ou pagão, que nega a existência de Deus ou prega a divinização do ocupante do poder.

Nero lançou no ano 64 feroz perseguição aos cristãos, que se seguiu ao longo do século dois para a preservação do culto pagão aos imperadores. Hitler, com políticas de extermínio do povo judeu - e de cristãos, ciganos e deficientes físicos - sustentou um Estado ateu em que o "führer" era o senhor supremo da vida e da morte.

Por outro lado, Bento 16, o papa do amor e da paz da encíclica "Deus Caritas Est", ao abrir a 5º Celam, em Aparecida, considerando "a realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo", questionou: "O que é a 'realidade'? O real? São 'realidade' só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos?"

Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como demonstram os resultados dos sistemas marxistas e dos capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante, e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito de "realidade" e, em conseqüência, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas.

A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: Só quem reconhece Deus conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade dessa tese é evidente ante o fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parênteses".

Para se evitarem "caminhos equivocados e com receitas destrutivas", é indispensável que o Estado laico também dialogue com a ciência, que, quando busca a verdade e é conduzida com vistas à preservação da dignidade humana em plenitude, não contradiz verdades da fé.

Nos temas de proteção à vida, a ciência moderna comprova que ela se dá a partir da concepção, o que já impõe substancial amparo jurídico do Estado.

A proteção constitucional e legal à vida - única e irrepetível - a partir de seu início confirma, pois, o que algumas das maiores religiões já afirmam desde tempos imemoriais.

Assim, quando nos defrontamos com temas como aborto, pesquisas destrutivas com células-tronco embrionárias, comercialização de embriões humanos por clínicas de fertilização artificial, não se pode calar a manifestação de cristãos, judeus, muçulmanos e até mesmo de ateus como expressão da rica realidade dos que compõem a sociedade brasileira.

Quando se sustenta que o Estado deve ser surdo à religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste esse mesmo Estado de características pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas pelas Constituições brasileiras.

A democracia nasce e se desenvolve a partir da pluralidade de idéias e opiniões, e não da ausência delas. É direito e garantia fundamental a livre expressão do pensamento, inclusive para a adequada formação das políticas públicas.

Pretender calar os vários segmentos religiosos do país não apenas é antidemocrático e inconstitucional mas traduz comportamento revestido de profunda intolerância e prejudica gravemente a saudável convivência harmônica do todo social brasileiro.

(Ives Gandra da Silva Martins e Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, na Folha de S. Paulo de 14/6)

Nota:
Ives Gandra da Silva Martins, advogado tributarista, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da UniFMU, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra. Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e mestre em educação pela USP, é professor de direitos e garantias fundamentais da Universidade Mackenzie e presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP.