sexta-feira, maio 02, 2008

Marcelo Gleiser e o ateísmo militante

O texto a seguir (publicado na Folha de S. Paulo de 26 de novembro) surpreende por ser do mesmo articulista que já chamou criacionistas de "criminosos" e disparou críticas à religião noutras ocasiões. Marcelo Gleiser parece não ter uma postura fixa quando o tema é ciência e religião. Mesmo assim, ele faz alguns comentários interessantes:

Não é surpresa para ninguém que existem tensões entre ciência e religião. Santo Agostinho, o primeiro grande teólogo do cristianismo, afirmava que o pensamento aplicado à natureza leva ao pecado e à perdição; que, para obter a redenção, o importante é dedicar-se à adoração do Eterno.

Mas a verdade é que a relação entre ciência e religião é bem mais complexa do que essa divisão superficial entre dois campos, o da razão e o do espírito. Infelizmente, volta e meia aparecem depoimentos que exacerbam exatamente essa polarização destrutiva. É o caso de três livros recentes: O Fim da Fé (The End of Faith), de Sam Harris; Quebrando o Feitiço (Breaking the Spell), de Daniel Dennett; e A Delusão Divina (The God Delusion), de Richard Dawkins. É sobre o livro de Dawkins, o mais virulento de todos os três, que escrevo hoje. Primeiro, vamos às apresentações. Richard Dawkins é um biólogo especializado na teoria da evolução, professor em Oxford, Inglaterra, e um dos divulgadores de ciência mais famosos do mundo, com best-sellers como O Gene Egoísta e O Relojoeiro Cego. Dawkins é um ateu declarado. Até aí tudo bem; muitos cientistas o são. Para muitos, mas não todos, é importante frisar isso: a conciliação entre uma descrição científica do mundo - baseada na obtenção de informação empírica da natureza por meio de experimentos e observações quantitativas - e a aceitação de uma realidade sobrenatural, inescrutável à razão humana, é impossível. Já para alguns, o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação. Imagino que Dawkins considere esses cientistas religiosos no mínimo incompetentes.

Para ele, a ciência é um clube fechado, onde só entram aqueles que seguem os preceitos do seu ateísmo, tão radical e intolerante quanto qualquer extremismo religioso. Dawkins prega a intolerância completa no que diz respeito à fé, exatamente a mesma intolerância a que se opõe. Vejamos um de seus argumentos. Se a complexidade do mundo foi criada por uma divindade, esta deve ser necessariamente mais complexa do que tudo o que criou. Porém, segundo a teoria da evolução, isso é impossível: a complexidade é produto da evolução. A divindade criadora deveria ter sido a última e não a primeira a surgir. A quem Dawkins dirige um argumento desses? Certamente não aos religiosos. Qualquer pessoa que conheça um mínimo de teologia sabe muito bem que a idéia fundamental das religiões é que o divino não segue as regras causais que regem o mundo material. Deuses não evoluem; são absolutos, existem fora do tempo. Ele afirma que seu alvo são os "indecisos", que não acreditam em causas sobrenaturais mas não se declaram ateus. Será esse o modo de resolver o embate entre ciência e religião?

Na minha humilde opinião, absolutamente não. A atitude belicosa e intolerante do cientista britânico só causa mais intolerância e confusão. Seu grande erro é negar a necessidade que a maioria absoluta das pessoas tem de associar uma dimensão espiritual às suas vidas. Um erro meio parecido com o do materialismo dialético dos comunistas, em que tudo é atribuído a causas materiais. Tirar Deus das pessoas e colocar um líder fascista no seu lugar não dá certo. A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas. Se é essa a sua guerra, então ela já perdeu. O que a ciência pode fazer é proporcionar outra forma de espiritualidade [!], ligada ao mundo natural e não ao sobrenatural, à cativante magia da descoberta. É esse naturalismo, essa entrega à natureza e aos seus mistérios, que dá à ciência a dimensão espiritual que a torna humana.