A revista IstoÉ desta semana traz como matéria de capa “Os mistérios de Maria”. Logo de início, o texto trata das bodas de Caná e coloca Maria como a condutora de toda a ação e Jesus sendo conduzido pela mãe. Quando falta vinho na festa, “[Maria] insiste – e o filho, enfim, cede”, realizando o milagre da transformação de água em suco de uva. E a explicação de dom Filippo Santoro, bispo de Petrópolis e secretário da regional Leste 1 da CNBB, no Rio de Janeiro, é a seguinte: “Maria educou Cristo a ter essa ternura, esse coração aberto diante da necessidade do outro, especialmente dos pobres. Ao fazer o Senhor se comover com o infortúnio do casal nas bodas, ela acelerou um processo.” Então, Maria é que tornou o Filho de Deus terno e sensível às necessidades alheias? Essa é a visão católica da mãe de Jesus, que acaba por distorcer sua personalidade, seu papel e sua relação com Jesus.
Já Valmor da Silva, doutor em ciências da religião e professor da Universidade Católica de Goiás, acerta no alvo: “A exaltação de Maria pela Igreja Católica impede o acesso à sua verdadeira história. Com o passar do tempo, ela foi transformada em um mito, e daí a dificuldade em se traçar qualquer perfil.”
De fato, a escassez de material sobre Maria nos evangelhos acaba dando margem para especulações. E como ocorre em matérias sensacionalistas como essa da IstoÉ (pauta típica de fim de ano), volta de meia acabam apelando para os apócrifos. Curiosa é a afirmação do padre franciscano Jacir de Freitas Lima que diz que, diferentemente de outras histórias por demais fantasiosas contadas nos apócrifos, as passagens de Maria nesses textos preenchem as lacunas bíblicas. Que critérios ele usa para separar o que é fantasia do que é realidade nos apócrifos não nos é revelado.
A reportagem defende a tese de que a relação entre Jesus e Sua mãe teria sido “conflituosa” pelo fato de haver passagens em que Ele se dirige a ela como “mulher” ao invés de mãe. Esquecem-se, no entanto, de que esse tratamento era comum nos tempos bíblicos, e nada tinha que ver com desrespeito ou rudeza. Tentando explicar o que Jesus queria dizer na cruz ao se referir à Maria como “mulher”, dom Odilo Scherer, cardeal e arcebispo de São Paulo, não perde a chance de reforçar o dogma: “O tratamento de ‘mulher’ coloca Maria em paralelo com Eva, que foi a primeira ‘mulher’ e mãe da humanidade que pecou. Maria, nesse momento, torna-se mãe da humanidade redimida pela cruz de Cristo.” Mãe da humanidade? Essa idéia não é defendida em parte alguma das Escrituras.
E IstoÉ, apesar de ter entrevistado unicamente teólogos católicos (falha jornalística), acerta outra vez: “O curioso é que Maria não era figura das mais importantes no cristianismo primitivo. O culto a Nossa Senhora ganhou força apenas a partir da Idade Média.”
Maria foi uma grande mulher, um grande exemplo, não resta dúvida. Se ela foi escolhida para dar à luz o Filho de Deus, é porque reunia qualidades ímpares entre as mulheres daquela época. Mas isso não a torna um ser semi-divino, capaz de interceder pelos pecadores, função que pertence unicamente a Cristo.
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