quinta-feira, maio 01, 2008

O apócrifo do momento

Baseada no livro apócrifo conhecido como “Evangelho de Judas”, a matéria de capa da revista Época desta semana sustenta que, “de acordo com relatos de especialistas que tiveram acesso ao manuscrito, Judas afirma, em sua versão da história, que não traiu Jesus. A delação aos sacerdotes judeus teria sido, segundo o manuscrito, um desígnio divino para que o Filho de Deus sofresse o martírio e salvasse os homens. Judas também afirma, de acordo com os relatos, que não se enforcou depois, arrasado pela culpa. Teria sido perdoado por Jesus e orientado a se retirar para fazer exercícios espirituais no deserto.”

Os manuscritos estão sendo traduzidos do egípcio antigo (copta) pela Fundação Maecenas, da Basiléia, Suíça, e seriam uma versão feita no século IV ou V do original grego do século II. “Como o Evangelho de Judas é muito posterior ao tempo em que os eventos teriam ocorrido, não se pode nem mesmo tentar buscar algo nele sobre a figura histórica de Judas”, admite Época. Mesmo assim, a revista não perde a chance de especular sobre o assunto.

A matéria informa que, “de acordo com alguns estudiosos, o Evangelho de Judas não foi escrito pelo próprio apóstolo traidor. É uma composição do século II feita por agnósticos, membros de uma seita herética do início do cristianismo. A seita atribuía a salvação ao conhecimento de uma realidade obscurecida por um mundo que havia sido criado por uma entidade do mal, numa história parecida com a do filme Matrix, em que o personagem Neo... desperta de uma ilusão para salvar o mundo. Jesus, para os agnósticos, faz o papel de Neo”.

Esse "Evangelho de Judas" foi produzido por uma seita gnóstica especialmente radical, conhecida como cainita. Segundo esse grupo, a entidade criadora má era identificada como o Deus Criador do Antigo Testamento. Como foi esse Deus quem criou a Lei Moral que os cristãos herdaram dos judeus, ser contra essa Lei era, para os cainitas, uma obrigação. “Assim, Caim, o amaldiçoado por Deus por ter matado o próprio irmão, era visto como um libertador. Judas também. E Jesus, que para os agnósticos era um enviado do Deus verdadeiro e bom, superior ao Deus falso e mau do Antigo Testamento”.

Para Fernando Altemeyer, professor da PUC de São Paulo e entrevistado por Época, “Judas foi um mal necessário, um inocente útil”.

Essa matéria (do tipo que dá capa vendedora) evidencia uma vez mais o interesse em material especulativo sobre a Bíblia em detrimento da própria Escritura Sagrada. Pouco ou nada se fala na “grande imprensa” sobre os livros canônicos – e quando se fala, é quase sempre em tom de contestação. No entanto, quando surge mais um apócrifo, ainda que com conteúdo altamente duvidoso e destoante dos livros bíblicos, gastam-se páginas e mais páginas para tratar de suas curiosidades.

Esse tal “Evangelho de Judas” traz alguns problemas graves com respeito ao caráter de Deus. Ainda que seja tarefa quase impossível tentar entender (e explicar) a onisciência e a presciência divinas, imaginar que Judas teria sido uma “marionete” do Céu usada para precipitar os acontecimentos que levaram Jesus à crucifixão é assustador. Onde entraria o precioso livre-arbítrio humano, claramente expresso nas Escrituras, desde o Gênesis até o Apocalipse? Que Deus de amor (I João 4:8) seria esse capaz de usar um ser humano contra a sua vontade a fim de cumprir Seus propósitos? Época e o tal “Evangelho de Judas” inocentam o discípulo, mas incriminam o Criador!

Outra coisa: Quem disse que o Deus do Antigo Testamento é contraditório em relação ao do Novo? Leia, neste blog, o texto “Um Deus sanguinário”, e tire suas conclusões.

Michelson Borges