terça-feira, maio 06, 2008

O segredo da Muralha

Jovens de Bertioga caminham dez horas na Mata Atlântica para repetir expedição militar de 1943

Nenhum dos 11 jovens estava disposto a desistir da aventura só porque estava chovendo naquela manhã de domingo. Com o lanche na mochila, tênis confortáveis e roupa do tipo topa-tudo, eles sabiam que a caminhada seria árdua. Mas não imaginavam o quanto.

Às 7h30, assumi o papel do 12º membro de uma equipe composta por jovens adventistas de Bertioga e Boracéia, no litoral paulista. Destino: Serra da Mata Atlântica, também conhecida como “A Muralha”. Iríamos nos embrenhar por cerca de 17 km de mata virgem – só de ida.

Nosso guia foi o suboficial reformado da Aeronáutica George Silva de Souza, famoso por ter cruzado o Brasil correndo e pedalando, em 2003, e por estar percorrendo os países de fala castelhana na América do Sul (acompanhe o diário de viagem dele aqui no blog). George, que também é conhecido como Atleta da Fé, treina na Mata Atlântica várias vezes por mês. Da janela de seu sobrado dá para ver a Muralha. Segundo ele, poucas pessoas conhecem a trilha que iríamos percorrer e menos gente ainda sabe do segredo que nos aguardava no fim da expedição. Ele mesmo descobriu o local quase por acaso. Mas que local e que segredo são esses? Calma, calma... Por ora, encaremos a mata pela frente.

** A SUBIDA

A caminhada de subida, entre trilhas cercadas de árvores, densa vegetação e sobre pedras no leito do rio (o que tornou a viagem ainda mais molhada), levou cerca de sete horas. Logo de início, avistamos o “Morro da Fornalha”, também conhecido como “peito de moça”, pelo formato óbvio.


A certa altura, quando ainda faltava pouco menos da metade do caminho para chegarmos ao nosso objetivo, tivemos que cruzar uma caverna natural, formada por uma laje de pedra sobre o rio, com água até a cintura. Mal dava para uma pessoa passar. Foi uma das partes mais “adrenalizantes” da viagem, depois de termos nos equilibrado sobre troncos de árvores caídas e nos pendurado em cipós.

O mascote vira-lata Branquinho, um cachorro que mora na rua do George, nos acompanhou em toda a viagem. Não teve jeito: ele precisou ser levado no colo em vários trechos.


Perto do meio-dia, a chuva deu uma trégua e paramos para devorar o lanche que trazíamos em nossas mochilas encharcadas. Àquela altura, o cansaço já era visível. O George aproveitou para sair na frente com o “mateiro” Aldemir Porto, de 64 anos, a fim de averiguar se estávamos na trilha certa. Enquanto aguardávamos o retorno deles, alguns dos aventureiros ainda tiveram motivação para dar mergulhos numa pequena piscina natural no rio. Eu, hein?! Foi só me deitar sobre uma pedra para “apagar” por alguns minutos.

Quando acordei, os músculos das pernas haviam esfriado e estavam doendo um pouco. Percebi, então, que o restante da viagem seria bem penoso. Mas não queria perder a surpresa prometida pelo guia. Verifiquei a câmera fotográfica, recoloquei os tênis com as meias molhadas e continuei a caminhada com o grupo.

Tivemos que retornar pelo menos 1 km rio abaixo, já que havíamos perdido a trilha e precisávamos voltar a um ponto conhecido deixado para trás pouco antes da parada para o lanche. A partir daquele local, reforçamos a camada de repelente sobre a pele e voltamos a nos embrenhar na mata fechada. Tendo feito várias fotos do grupo em diversas situações, procurei me manter imediatamente atrás do guia, pois sabia que faltava pouco para chegar ao local visado e queria vê-lo em primeira mão. Mas, então, a chuva voltou a cair...

** O SEGREDO


Depois de mais alguns quilômetros de caminhada extremamente penosa, já que a ladeira naquele trecho era um pouco mais acentuada, minhas pernas avisaram que estavam no “automático”, movendo-se sozinhas, meio bambas. De repente, porém, o George parou de andar. Virou-se para mim e, em silêncio, apontou para um local à sua esquerda. Então pude ver o que buscávamos (e agradecer a Deus o fim do “sofrimento”).

Aos poucos, os jovens que haviam ficado mais para trás foram chegando ao local. Todos estavam extremamente exaustos, mas, assim como eu, recobraram o ânimo ao saber que havíamos conseguido concluir a expedição. À nossa frente, finalmente estava o tão aguardado segredo: no meio daquela mata virgem, encravado na pedra, havia um pequeno santuário dedicado à santa católica Nossa Senhora de Lourdes, com três pequenas estátuas enegrecidas e desgastadas pelo tempo.

Ao lado esquerdo da imagem maior, havia uma placa de prata com a inscrição:

“N. Sra. de Lourdes.

“Imagem aqui colocada por Euclides Ribeiro de Souza, da expedição chefiada por Francisco dos Santos, em setembro de 1943.

“Viandante [sic], se tens crença e fé, descobre-te e reza. Se não as tens, respeita esta imagem ao menos.”

George nos informou que a estátua foi levada até ali provavelmente por um grupo de militares do Forte São João, da cidade de São Vicente. Em 1992, um caçador entrou naquela mata e acabou se perdendo. Ele fez um rancho para se abrigar e não conseguiu encontrar o caminho de volta. Um ano se passou, até que, numa de suas andanças, encontrou o santuário e pôde a partir dali localizar a velha trilha aberta em 1943, que o levou até a civilização. Ele conta essa história num bilhete bastante deteriorado, colocado num porta-retrato ao lado das imagens e da placa de prata. Dizem que todos os anos ele volta para limpar o santuário.

** A LIÇÃO

Tiramos algumas fotos, descansamos um pouco e conversamos sobre o que motivou aquelas pessoas a fazer sacrifício tão grande na década de 1940. George nos lembrou que, “naquela época, não havia estradas nem trilhas. A expedição deve ter vindo por rio, utilizando-o como estrada”. Àquela altura, estávamos a 20 km da rodovia Rio-Santos. Por causa das palavras “expedição” e “chefiada”, George acredita que tenha sido um grupo de militares que levou a estátua para lá, quem sabe a pedido de religiosos ou para pagar uma promessa.

Tiramos outras lições e concluímos que, muitas vezes, criamos barreiras para levar a “imagem” de Jesus às pessoas. “A fé dos homens que chegaram aqui em 1943 deve ser respeitada, pois eles tiveram coragem para isso. Coragem que nosso povo também precisa ter para levar a mensagem da volta de Jesus a todas as pessoas”, comparou George. “Quando se entra na mata, a gente se sente frágil, sem saber o que nos vai acontecer a cada curva da trilha; a gente sente a proximidade com Deus e a necessidade dEle”, completou.

“Aqui no mato ainda podemos ver a beleza do que Deus fez”, disse uma das componentes da expedição, Márcia Garcia, de 17 anos. Dabson Reis Santos, 21, admitiu que ficou em dúvida se iria ou não. “Mas não me arrependi de ter vindo. Os banhos de cachoeira foram muito bons. Ser jovem adventista é divertido. Faz um ano que me tornei adventista.”

Pouco depois das 15 horas, com a chuva ficando mais forte, estávamos prontos para iniciar o caminho de volta, agora todo feito na floresta, num trajeto mais curto. George nos desafiou. Segundo ele, em mais umas sete horas, chegaríamos ao topo da Muralha. Agradeci a informação, mas disse que preferia deixar para outra ocasião.

Michelson Borges, jornalista e editor da Casa Publicadora Brasileira

(Texto originalmente publicado na revista Conexão JA julho-setembro de 2007. Na edição de outubro-dezembro, o jornalista Fernando Torres conta como foi a subida ao Pico do Bandeira, o terceiro mais alto do Brasil. Não perca!)

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