segunda-feira, junho 09, 2008

Mergulho no céu


Enquanto percorro os 16 km que separam a Casa Publicadora Brasileira (onde trabalho) do Centro Nacional de Pára-quedismo de Boituva (SP), sinto minhas mãos suando frio no volante. Durante duas semanas, tentei não pensar muito no assunto, mas... agora não tem mais jeito. O tempo está bom: céu quase limpo e pouco vento. Vai ser hoje.

Somos três no carro, a equipe editorial da revista Conexão JA. O Fernando e eu estamos ali para um salto duplo de pára-quedas. Já a Sueli diz que veio para nos dar ânimo (será?), pois também saltou para uma matéria da revista Superamigo, há 12 anos. Mas, como ela mesma diz, não dá para descrever exatamente o que acontece nos minutos da queda – só experimentando mesmo. Pois é. Por isso, nós estamos prestes a saltar (se a dama da Conexão JA foi, a gente não pode amarelar, né?).

Depois de uma viagem no mínimo tensa, chegamos. Estaciono o carro e vamos procurar o pessoal do centro de pára-quedismo, onde somos apresentados aos instrutores. Para eles, tudo é muito natural, afinal, têm no currículo a experiência de 3 a 6 mil saltos. Mas para nós, a coisa toda é muito... Como é mesmo o nome daquele instrumento que indica a direção do vento? Ah, sim, biruta.

Estamos vestidos com a camiseta da Conexão JA, mas, por cima dela, temos que usar um macacão. É que a quase 4 mil metros de altura o frio é bem intenso e nos faria tremer (ainda mais). Devidamente equipados, sinto-me como um astronauta (o Fernando já achou que era um super-herói). Mas ainda tinha mais: os instrutores logo nos prendem ao harness (mais conhecido como “macaquinho”). São tiras bem resistentes – tão apertadas que é difícil de caminhar –, que conectam o pára-quedista ao instrutor durante o salto.

O avião está a nossa espera. Vamos até ele em um reboque especial de trator e, chegando lá, embarcamos na pequena aeronave – dois instrutores, dois cameramen, um casal recém-formado no curso de pára-quedistas, o Fernando e eu.

À medida que o avião sobe, observo o altímetro do meu instrutor, o Lúcio. O salto será feito quando chegarmos a 12 mil pés, isto é, 3.700 m. O problema é que, na metade do trajeto, ao observar a paisagem pela janela, já acho alto demais.

Até aqui estou relativamente calmo. Começo a ficar realmente tenso quando, a pouco mais de 2 mil metros, o instrutor me conecta aos mosquetões, ganchos capazes de suportar até mil quilos.

Minutos depois, chegamos aos tais 12 mil pés. Alguém abre a porta lateral do avião. O vento ensurdecedor e frio invade a aeronave. Gelo na hora (e não é por causa da temperatura). O instrutor me pede para relaxar. Difícil.

Vejo o casal de pára-quedistas saltar na minha frente e desaparecer rapidamente nas nuvens. O cameraman já está lá fora, segurando-se no avião e esperando meu salto. Agachado, aproximo-me da porta e observo uma cena surreal. Lá embaixo, entre as aberturas nas nuvens, campos em tons diferentes de verde e manchas marrom-amareladas. É semelhante às cenas que eu já havia contemplado em viagens de avião, com a diferença de que não havia fuselagem me separando do céu, do vento, do frio – e do misto de curiosidade e medo.

“Coloque as pernas para fora”, ordena o instrutor. “O quê?!”, penso. “Isso só pode ser loucura! Colocar as pernas para fora num avião a 3.700 m de altura!” Ao ver meus tênis balançando contra aquele fundo “infinito”, com as nuvens passando em alta velocidade, meu coração dispara. Agora não tem volta MESMO!


Se não é o instrutor avançar para o nada, acho que ficaria ali na porta, paralisado. A próxima coisa que sinto é o corpo se inclinar para frente e mergulhar de ponta-cabeça. Parece que vamos “capotar” no ar, mas rapidamente o Lúcio estabiliza nosso vôo, fazendo com que fiquemos na horizontal. A ordem para manter as mãos no peito durante o salto tinha sido tão enfática que até me esqueço de abrir os braços. Quem faz isso é o instrutor. E então...


Estou voando! A mais de 200 km/h em queda livre! O som é ensurdecedor, semelhante a andar com a cabeça próxima a uma janela aberta num carro em alta velocidade. Posso sentir a pele sendo repuxada pelo vento e o lóbulo das orelhas balançando freneticamente. Através dos óculos de plástico, vejo as nuvens passando rapidamente. Multiplique por mil a sensação que teve ao andar pela primeira vez em uma montanha-russa; talvez chegue perto do que sinto nesse momento.

O instrutor move os braços, inclina o corpo e nos faz girar 360 graus. Adrenalina pura! A poucos metros de nós, o cameraman registra tudo e faz sinal de positivo com o polegar. Tento sorrir para a câmera, mas os músculos do meu rosto estão contraídos. É uma sensação ambígua. Por um lado, o prazer da liberdade é incrível. Por outro, é impossível não deixar de lembrar que estou caindo em direção ao chão. São cerca de 50 segundos nos quais percorremos aproximadamente 2 mil metros. Nem sei se estou respirando durante esse tempo.

De repente, sinto um puxão para cima. E a exatos 50 segundo após o salto, o pára-quedas de náilon começa a se abrir. O corpo fica rapidamente na posição vertical e a sensação de peso volta. A impressão é de estar flutuando sob uma enorme maquete. Aliás, só quando balanço os pés é que volto à realidade: estou suspenso por cordas e cabos a mais de 1,5 km de altura!

O instrutor me mostra os batoques (alças que controlam o pára-quedas) e pergunta se quero manobrá-lo. Vamos lá! Já que estou aqui, quero experimentar tudo. Seguro-os firme e puxo lentamente para baixo o batoque da esquerda. Então, começamos a “cair” para aquele lado. Volto o batoque imediatamente para cima e puxo o outro. E lá vamos nós para a direita. “Observe os outros pára-quedistas”, adverte o Lúcio. “Não podemos bater neles.” Consigo visualizar cinco pára-quedistas ao nosso redor, uns mais abaixo, outros mais acima, a metros de distância. Um deles deve ser o Fernando.

Brinco um pouco com os batoques e devolvo o comando para o Lúcio. “Está vendo aquele círculo?”, ele pergunta. “É lá que temos de pousar.” Daquela altura, a rodovia Castelo Branco parece uma linha fina que corta as terras. “Observe a biruta. Temos que pousar contra o vento”, diz o Lúcio. “Biruta sou eu!”, penso.

Treinamos mentalmente o procedimento de pouso. “Levante as pernas e abrace os joelhos.” Ele é bem enfático, pois as pernas dele têm que tocar o solo antes, caso contrário, posso quebrar as minhas.

Nessa altura, a velocidade ainda parece pequena, mas à medida que o chão fica mais próximo e começo a ter padrões de referência, a coisa muda. O solo se aproxima rápido. Obedecendo à orientação do Lúcio, abraço os joelhos e tento mantê-los assim. De repente, algo inesperado acontece: o vento cessa por completo, o que diminui nossa sustentação. Pousamos rápido demais e meus pés encostam no chão antes dos pés do Lúcio. Não dá outra: caímos para frente, ele em cima de mim. Que mico! Ainda bem que as pedras arredondadas do círculo de pouso amortecem a queda e saímos ilesos.

Depois de o instrutor desconectar o pára-quedas, levanto-me com as pernas ainda tremendo, mas com a sensação de ter vivido uma experiência sensacional. Lá em cima, perdi completamente a noção do tempo, mas agora, lamento que tudo acabou em míseros sete minutos. Bem que a Sueli disse ser quase impossível descrever um salto desses...

O Lúcio recolhe o pára-quedas e caminhamos até a escola. Ali, encontro a Sueli e o Fernando já me aguardando (ele havia pousado num local mais próximo da escola). Corremos para o abraço e, por um momento, não dizemos nada. De alguma maneira, entendemos que algo mais nos une, como se tivéssemos nos tornando membros de um clube fechado, exclusivo – a confraria daqueles que sabem o que é voar como um pássaro.

(Texto de Michelson Borges, originalmente publicado na revista Conexão JA de janeiro-março de 2008. Fotos: Otávio Augusto Bonomi e Otávio de Camargo Jr.)