quinta-feira, novembro 06, 2008

Memórias Feridas – O Renascer de Uma Nação

20 de junho de 2007, 0h39. Fechamos as passagens. Dia 31 de agosto vamos para Ruanda. Voltamos dia 17 de agosto. O único problema agora são os malditos passaportes... A previsão para entrevista em Brasília (cidade do Paulo) para fazer um é só no dia 19 de agosto. E em Itajaí só é possível agendar essa “bendita” entrevista às sextas-feiras. Sexta passada, tentei entrar em contato, mas era feriado municipal. Mas tudo bem. Tem uma cidade aqui perto em que é possível agendar e tirar o passaporte em 24 horas. Estamos tentando. Vai dar tudo certo. TEM que dar certo!

24/6/2007, 23h28. Deu tudo certo. Fomos à Polícia Federal de Campinas. Como o sistema de passaportes está mudando por lá – eles estão fazendo os últimos documentos do tipo verde e mudarão para o azul, mais caro – os últimos documentos requisitados ficarão prontos em uma semana. E só ir buscar na sexta. Agora estamos estruturando o roteiro e estabelecendo os contatos. As férias começaram na sexta, mas eu não posso ir para casa. Se puder, vou daqui direto para Ruanda.

5/7/2007, 2h27. Passaportes na mão. Hoje tomamos as vacinas contra febre amarela e pólio. Não que eu vá contrair paralisia infantil, mas é que na África essa doença não está erradicada e eu poderia trazer o vírus para cá.

12/7/2007, 11h40. Entramos em contato com o governo de Ruanda para saber se eles gostariam de nos ajudar. Mandamos na semana passada uma correspondência explicando os objetivos do trabalho e tal. Hoje ligamos pra lá e eles sinalizaram positivamente. Estão providenciando para que o ministro da cultura, Joseph Habineza, possa nos ajudar. Vamos ver se isso dá certo mesmo. Estou mais tranqüila. Claro que não vamos atrás só do governo, né? Estamos estabelecendo contato também com ONGs relacionadas com o trabalho de reconciliação.

Assistimos ao filme “Tiros em Ruanda”. Fiquei mal o dia inteiro, como que desconectada da realidade.

31/7/2007, 0h30. Estou criando coragem para sair debaixo das cobertas e arrumar minha mala. Vamos para Ruanda amanhã. Tudo certo, contatos estabelecidos e roteiro traçado. Estou bem sossegada, nem parece que a coisa vai realmente acontecer. Estarei de volta dia 17 de agosto.

7/8/2007, 17h55. Depois de encarar mais de vinte horas em aeroportos de três países diferentes – Brasil, África do Sul e Ruanda –, chegamos a Kigali e já fizemos milhões de coisas. Entrevistamos várias pessoas interessantes. Entre elas o ministro da Cultura Joseph Habineza e Kristin Doughty, antropóloga americana que encontramos no meio do caminho.
Fomos a duas sessões de julgamento de acusados pelo genocídio de 1994. Só que esse julgamento é diferente do que estamos acostumados. O povo de Ruanda tem por hábito promover, desde os tempos pré-coloniais, um julgamento chamado Gacaca (pronuncia-se Gatchatcha), que sempre era feito quando havia a necessidade de resolver disputas. Atualmente a Gacaca e promovida desde 1994 para punir os culpados pelo massacre. Eles escolheram fazer isso porque não seria possível julgar todos os envolvidos pelos mecanismos tradicionais de justiça.

A comunidade escolhe cinco pessoas cofiáveis para serem juízes. Não há júri nem advogados. Testemunhas são chamadas para participar. Um juiz explica para os presentes o que aconteceu e pergunta se alguém entre eles pode testemunhar contra os acusados. Os acusados têm sua chance de se defender. Os juízes então comparam o que as testemunhas e os acusados dizem. Se após essa comparação ficar comprovado que o acusado é inocente, ele é liberado. Mas caso os juízes constatem que são mesmo culpados, eles saem do tribunal diretamente para a cadeia, onde vão aguardar novo julgamento alguns dias depois.

Na segunda etapa da Gacaca, toda a vizinhança do acusado é chamada para assistir. Novamente os juízes explicam o que aconteceu e perguntam se algum dos presentes pode dizer se viu algo. Aqueles que viram levantam-se e falam abertamente. Relatam as circunstâncias e ações dos acusados com detalhes: armas usadas, quantas pessoas viram ser assassinadas, etc. Depois desse processo, os juízes se reúnem novamente para comparar os depoimentos e dar o veredicto. Se condenado, a pena mínima á de quatro anos e varia muito de acordo com as circunstâncias de cada crime.

08/08/2007, 16h35. Hoje fomos ao Centro Memorial de Kigali. Conteúdo fantástico. Apresenta os acontecimentos de antes, durante e depois do genocídio de forma bem didática. Fotos e imagens que te fazem voltar no tempo. Algumas delas são inegavelmente chocantes. Mostram sem censura os horrores perpetrados em Ruanda sob a negligência criminosa da comunidade internacional. Conseguimos autorização do governo para filmar e fotografar o Centro, mas resolvermos voltar lá na sexta, pois poderemos fazer com mais calma. Ao sair, comprei vários livros e um DVD. Na sexta comprei também uma camiseta que diz: “Um povo que esquece a sua historia está condenado a repeti-la.” Chorei.

13/8/2007, 16h58. Só mais uma entrevista amanhã e ok. Hoje o Joelmir passou a tarde toda com um tradutor para traduzir dois depoimentos que gravamos. Precisamos fazer isso agora. Um saco. Levou mais de três horas e ainda não acabou. Amanhã ele volta para finalizar. O resto das entrevistas está em inglês e francês. Material “da hora”! Quinta chegaremos em casa. Mal posso esperar.

Durante a semana visitamos a ONG Hope After Rape (“Esperança depois do estupro”). Entrevistamos duas mulheres que foram estupradas durante o genocídio. O estupro foi uma das formas de matar. Vários homens que sabiam ser portadores do HIV estupraram milhares de mulheres.

Visitamos também a Escola Técnica de Murambi, na província sul. A antiga escola é hoje um memorial do genocídio. As salas de aula guardam cadáveres mumificados das vítimas. Todos têm marcas de cortes a facão e mutilações. Inclusive crianças.

Em 16 de abril de 1994 os tutsis da região de Murambi tentaram se esconder em uma igreja. Mas o prefeito e o bispo disseram que eles deveriam procurar proteção na escola técnica, ocupada naquele momento pelas tropas francesas. Pouco depois que o conflito começou, as tropas receberam ordens para deixar o país. Era uma armadilha.

Os tutsis se refugiaram na escola técnica. Cinco dias depois, as tropas Interahamwe invadiram a escola e assassinaram cerca de 45.000 tutsis. Outros foram mortos enquanto tentavam se esconder em uma igreja.

O guia do memorial, François Rusanganwa, guarda o local onde sua família morreu. Ele sabe que eles estão ali, mas não pode identificar os corpos mumificados.

19/8/2007, 0h54. Finalmente de volta.

Para mim, essa viagem ensinou várias coisas, muitas das quais só vou conseguir aplicar em minha vida aos poucos. É esmagadora a sensação de impotência. É duro ir para lá sem poder mudar nada, ir lá simplesmente para relatar o que aconteceu. Tive dificuldade para separar o pessoal do profissional. Não teve como.

Espero que com este projeto as pessoas possam ter a mente mais aberta para questões que parecem bobas, mas que na realidade são cruciais. O que aconteceu lá em Ruanda há 13 anos foi reflexo do ódio, preconceito, mentira e intolerância – os mesmos sentimentos que permeiam o coração de todos nós. Mas aquele é um exemplo do que pode acontecer quando essas coisas terríveis têm a chance de se manifestar completamente.

Todas as pessoas que permitem que essas coisas cresçam dentro de si são tão culpadas quanto os envolvidos naquele massacre, já que têm dentro de si a mesma disposição. A única diferença é a falta de oportunidade de colocar isso em prática. Se tivessem chance, com certeza fariam a mesma coisa.


(O documentário Memórias Feridas foi apresentado como trabalho de conclusão no Curso de Jornalismo do Unasp, em novembro de 2007. Os jornalistas Joelmir Melo, Larissa Jansson e Paulo Mondego ficaram em Ruanda entre os dias 7 e 17 de agosto de 2007)

Nota: Ruanda é um pequeno país localizado na África Central. Tem aproximadamente 7,5 milhões de habitantes. Sua área é de 26.338 km² – menor que o Estado de Alagoas. Faz fronteira com Uganda, Tanzânia e República Democrática do Congo. Os colonizadores de Ruanda foram primeiro a Alemanha e, em seguida, a Bélgica. Os belgas estabeleceram um sistema de divisão das três raças existentes no país – Hutus, Tutsis e Twas. Antes da colonização, esses três povos coexistiam como um só povo.

A Bélgica estabeleceu a divisão oficial dos três povos e privilegiou os Tutsis, grupo minoritário.

Perto da independência, a Bélgica passou a apoiar os hutus, que passaram a perseguir os tutsis. Várias ondas de violência e assassinatos fizeram com que muitos tutsis se refugiassem nos países vizinhos. Esses refugiados formaram em 1986 a Frente Patriótica Ruandesa com o objetivo de tomar o poder.

Em 5 de julho de 1973, o ministro da defesa Juvénal Habyarimana tomou o poder por meio de um golpe. Foi reeleito em 1983 e em 1988, como único candidato. Sob pressão por reformas políticas, Habyarimana anunciou uma reforma política em 1990. No mesmo ano, a Frente Patriótica Ruandesa passou a atacar Ruanda a partir de Uganda. Isso serviu de pretexto para que Habyarimana passasse a massacrar os tutis. Em 1992 foi assinado um cessar-fogo entre o governo e a FPR. O documento ficou conhecido como o Tratado de Arusha.

No dia 6 de abril de 1994, Juvénal Habyarimana e Cyprien Ntaryamira, o presidente do Burundi, foram assassinados. O avião que os levava para Kigali foi derrubado. Esse foi o motivo para que entre abril e julho os militares hutus matassem cerca de um milhão de pessoas entre os tutsis e hutus moderados, no Genocídio de Ruanda.

Em 4 de julho, a Frente Patriótica de Ruanda ocupou partes do país e conquistou Kigali, dando fim ao massacre.

Assista “Hotel Ruanda”, uma ótima produção sobre esse conflito ruandense.