sábado, dezembro 20, 2008

Retratos da humanidade

As revistas Veja e IstoÉ desta semana são um retrato da humanidade em seus contrastes. Na reportagem “O despertar da solidariedade”, IstoÉ mostra que o “exercício de se colocar na pele do outro, conhecido como compaixão, é natural do ser humano. E está em alta, segundo a percepção de especialistas no assunto. ... A recente enchente em Santa Catarina, que matou 127 pessoas e desalojou 27 mil, comprovou o fato ao colocar sob o holofote, além da tragédia, um outro dado: a generosidade do povo brasileiro”.

A matéria menciona a solidariedade nascida de segundas intenções como garantir a própria sobrevivência ou a segurança ajudando os que estão mais próximos, mas também avalia como pura compaixão o ato de ajudar pessoas que moram distantes e que não têm relação direta com o praticante da boa ação. “Somente a compaixão é capaz de transformar a comoção diante de uma tragédia em altruísmo contínuo.”

Sem apelar para explicações darwinistas mirabolantes (como é comum nesse tipo de reportagem), IstoÉ arrisca uma explicação médica: a moeda de troca emitida pelo corpo humano ante o stress verdadeiro de ajudar outra pessoa são neurohormônios como serotonina e dopamina, ligados à sensação de bem-estar. “Faz bem ser bom”, diz Ricardo Monezi, psicobiólogo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo ele, estudos apontam que o exercício da cidadania promove ainda a produção de endorfina, que possui função analgésica. Daí decorrem o alívio e a leveza relatados.

Especialista em medicina comportamental, Monezi explica que todo ser humano é programado [eu diria projetado; mas tudo bem, se há programa, há um Programador] para se preocupar com o semelhante. Quando, então, ele presencia uma situação de adversidade, o cérebro elabora o sentimento da compaixão e ativa o sistema límbico cerebral, espécie de QG dos aspectos emocionais. Este, por sua vez, passa a funcionar como um centro de logística, distribuindo tarefas para diferentes partes do corpo, que se transformam em ações na prática.

No outro extremo do espectro está o ódio e o preconceito. Esses sentimentos ficam evidentes na matéria de Veja, “À espera de um salvador”. Na reportagem, é pintado o cenário do “genocídio silencioso” em Darfur, no Sudão. Diofo Schelp compara: “O mesmo mundo que se apieda de um filhote de urso-polar abandonado pela mãe no zoológico de Berlim fecha os olhos para as centenas de milhares de crianças subnutridas dos 130 campos de refugiados de Darfur.” E continua: “O mundo que está prestes a comemorar o Natal, festa que ultrapassou os limites do cristianismo para congraçar homens e mulheres de diferentes credos, esquece que em Darfur a noite de 24 de dezembro será apenas véspera de mais um dia em que crianças morrerão, homens serão executados e mulheres, estupradas. Vem sendo assim desde 2003, quando eclodiu o conflito entre o governo do ditador Omar al-Bashir e rebeldes dessa região do oeste sudanês. E também quando, armados pelo governo de Cartum, bandos de facínoras, a pretexto de combater revoltosos, intensificaram a matança indiscriminada de cidadãos que não pertenciam à sua etnia ‘árabe’.”

Veja explica que a guerra civil na região provocou uma crise humanitária de proporções épicas. Quase metade dos 6 milhões de habitantes de Darfur vive em aglomerações humanas improvisadas, os campos de deslocados internos – ou, simplesmente, refugiados. Outros 2 milhões de pessoas ainda não deixaram suas aldeias, mas foram afetadas pela destruição de lavouras ou pela morte de familiares. A exigência da permissão a estrangeiros para viajar à zona de conflito é uma tentativa do governo de sonegar ao resto do mundo dados e imagens dos horrores cometidos em Darfur. O ditador sudanês Omar al-Bashir, que chegou ao poder em 1989 em um golpe organizado por fundamentalistas islâmicos, tem mesmo o que esconder. Com a justificativa de combater rebeldes que lutam contra o regime, o governo do Sudão bombardeia aldeias e apóia os janjaweeds, milícias autoproclamadas árabes cuja missão é limpar Darfur de outras etnias. Ao todo, já morreram 300.000 pessoas. Hoje, os ataques acontecem com menos intensidade do que no início da guerra, em 2003 e 2004. Mas não são números que definem um genocídio.

Cinco vezes ao dia, rebeldes de uma das facções do Exército de Libertação do Sudão estendem seus tapetes e rezam voltados para Meca, enquanto o fuzil automático repousa ao lado. Tremenda contradição! Há relatos de aldeias que foram saqueadas, tiveram seus moradores mortos e as mulheres estupradas coletivamente. “Em Darfur, os árabes e os africanos se parecem uns com os outros. Foi a propagação da ideologia da supremacia islâmico-árabe entre os povos nômades do deserto que levou negros a matar negros”, explica o historiador Muhammad Jalal, da Universidade de Cartum.

Esse é o ser humano: capaz de atos solidários dignos de nota, mas também capaz de descer ao mais baixo nível do assassinato e do estupro. Depois de tantos milênios neste planeta, parece que nada mudou.