quarta-feira, agosto 05, 2009

Universalidade dos direitos humanos e liberdade religiosa

Aldir Guedes Soriano é advogado, pós-graduado em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca (Espanha). Vice-Presidente da Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania (Ablirc), membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de São Paulo (2008 e 2009) e presidente da Academia Venceslauense de Letras. Em 2002, lançou o livro Direito à Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional, que alcançou o sucesso preconizado por seu prefaciador, Celso Ribeiro Bastos, na medida em que inspirou novos trabalhos acadêmicos sobre o tema, em diversas universidades brasileiras. Aldir, que também é adventista do sétimo dia, concedeu esta entrevista à revista jurídica Consulex, de 15 de junho de 2009. Leia alguns trechos:

O que é liberdade religiosa?

Entendo que a liberdade religiosa é direito humano fundamental que assegura a todo cidadão a faculdade de escolher, de manifestar e de viver de acordo com sua concepção religiosa, agnóstica ou ateia, em condições de igualdade. Há diferentes concepções acerca da liberdade religiosa, conforme as diversas correntes jusfilosoficas. Segundo os jusnaturalistas, a liberdade religiosa é direito natural da pessoa humana, que nasce com o homem, que é ser ontologicamente livre. Para os idealistas, a liberdade religiosa é um ideal; para os realistas, é conquista humana, consubstanciada na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos. Não se trata apenas de direito natural, sem força jurídica vinculante. Sem essa liberdade pública não pode haver paz social e a convivência harmoniosa entre as diversas concepções religiosas existentes na sociedade, incluindo ateus e agnósticos.

Qual e a relação entre o direito à liberdade religiosa e democracia?

Entendo que o direito fundamental à liberdade religiosa pode ser considerado como legado do pensamento liberal, que permeou a revolução estadunidense e foi determinante no advento da Constituição norte-americana. Essa mesma corrente do pensamento político também influenciou e conformou o constitucionalismo das demais nações, principalmente ocidentais. A liberdade religiosa, como direito humano positivado, pode ser facilmente associada ao advento do Estado liberal e democrático. Não há direitos civis e políticos sem democracia, nem tampouco liberdade religiosa. A democracia é o substrato que permite o exercício da liberdade religiosa e, também, dos demais direitos fundamentais da pessoa humana. A liberdade de expressão e de religião é a pedra de toque da democracia. Liberdade religiosa e democracia são inseparáveis. Ademais, o poeta alemão Heinrich Heine sintetiza toda a importância da liberdade de expressão e de imprensa no seguinte pensamento: “Onde queimam livros, acabam por queimar pessoas.”

E o fundamento desse direito?

O fundamento do direito à liberdade religiosa pode ser encontrado a partir da seguinte indagação: Por que o Estado deve proteger o direito à liberdade religiosa? Segundo o ponto de vista liberal, o Estado deve proteger a liberdade religiosa porque ao cidadão cabe o direito de escolha, ou seja, ele tem o direito de escolher as suas crenças e de viver ou não conforme os ditames de sua consciência religiosa, ateia ou agnóstica. Ademais, obedecer aos preceitos divinos é faculdade humana (livre-arbítrio). Essa resposta impõe, contudo, outra pergunta: Por que o direito de escolha do cidadão deve ser respeitado? A explicação mais satisfatória está ligada ao principio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o Estado deve respeitar as escolhas porque o ser humano é dotado de dignidade própria (ou intrínseca) e, por isso, merece ser tratado com respeito e consideração. Assim sendo, o fundamento cardeal do direito à liberdade e dos demais direitos é a dignidade da pessoa humana.

Após 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948, a liberdade religiosa ao redor do mundo não está suficientemente consolidada por meio das constituições estatais e dos diversos tratados internacionais de direitos humanos?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, impactou positivamente a comunidade internacional, entretanto não há liberdade religiosa satisfatória em muitos países. Os tratados internacionais de direitos humanos são constantemente violados por inúmeros Estados signatários, embora as suas próprias constituições, no mais das vezes, assegurem as liberdades de consciência e de crença. Assim sendo, milhares de pessoas não podem exercer “a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”, como idealiza a Declaração de 1948. Em pleno século 21, muitos são perseguidos, encarcerados ou torturados até a morte, simplesmente parque ousaram mudar de religião.

Isso também acontece nos países democráticos?

Segundo Paul Marshall, as violações do direito à liberdade religiosa estão espalhadas por todo o mundo, contudo é notória a gravidade dessas violações nos Estados totalitários, considerados não livres. Nesse sentido, merecem destaque Coréia do Norte, China, Cuba e Vietnã, pois são grandes violadores dos direitos humanos. Há, também, severas restrições à liberdade religiosa na Índia, Arábia Saudita, Sudão e Irã. Por outro lado, os Estados democráticos do Ocidente são os que oferecem melhores condições para o exercício das liberdades públicas relacionadas à religião. Note-se que a maioria dos países restritivos aos direitos fundamentais está localizada na chamada “Janela 10-40”, que se estende do Oeste da África até a Ásia e inclui países do Oriente Médio, Índia e China.

Entre os países mais restritivos, o senhor mencionou alguns Estados muçulmanos. Por que a situação ali é tão grave?

Ocorre que esses países são teocráticos. Assim, subsiste a fusão entre a mesquita e o Estado e o direito estatal se confunde com a religião. A Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos do Islã, de 1990, estabelece que os direitos humanos devem se submeter-se à Lei Islâmica (Sharia), como observa Littman. Daí a impossibilidade de se invocar os direitos humanos, já que a lei muçulmana tem prevalência em face da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de eventuais tratados internacionais, ainda que ratificados. Esse fato pode ser considerado uma patologia do direito internacional. O relativismo cultural, nesses Estados, é invocado como justificativa para as mais graves violações de direitos humanos contra as minorias religiosas, mulheres e crianças. Aqueles que não são muçulmanos são tratados como cidadãos de segunda classe nos países teocráticos.

É uma realidade pouco conhecida no Ocidente...

É verdade. Trata-se de fato completamente ignorado pelos ocidentais, como observa Saulo Ramos em seu livro O Código da Vida, ao relatar incidente ocorrido na cidade de Meca, Arábia Saudita. Um time de futebol, com jogadores brasileiros, foi expulso do hotel em que estava hospedado após ter sido descoberto pela polícia religiosa. Os atletas tiveram que ticar em uma cidade vizinha e voltaram para Meca apenas para o jogo. Os não muçulmanos não podem entrar em Meca, pois estariam profanando a cidade santa. Os livros da erudita BatYe’or abordam com profundidade esse problema, com base na legislação islâmica.

A conversão religiosa também enfrenta limites?

A falta de liberdade de mudar de religião também aflige os muçulmanos que vivem nesse contexto teocrático, pois podem ser severamente castigados quando se convertem No Ocidente, os cristãos podem mudar de religião, mas os muçulmanos que residem nas teocracias não desfrutam da mesma liberdade. Inúmeras mesquitas são construídas nos países ocidentais, mas, até mesmo em Estados islâmicos moderados, os cristãos só podem construir igrejas mediante decreto presidencial. (...)

Não precisamos nos preocupar com o tema no Brasil?

Esse certamente não é o caso. Os problemas aqui são mais sutis e giram em torno de discriminações religiosas que, com certa frequência, ocorrem nas escolas e, também, nos ambientes de trabalho. Após a palestra que proferi na sede da Seccional paulista da OAB, uma senhora fez um pedido comovente: “Por favor, não se esqueça dos problemas enfrentados pelos seguidores das religiões de matriz africana. As nossas crianças vão à escola e voltam chorando, porque as professoras dizem que são seguidoras do demônio.” Na minha experiência, percebo que esse tipo de discriminação religiosa é muito comum e as vítimas podem ser de qualquer religião ou mesmo pessoas agnósticas ou ateias. Quem pratica tais atos de intolerância viola a legislação pátria e o art. 12 do Pacto de San Jose da Costa Rica. Os pais são responsáveis pela instrução religiosa dos filhos. Ninguém tem o direito de constranger crianças dessa maneira; no mínimo, covarde.

Quais as perspectivas do direito à liberdade religiosa para o século 21?

É sempre difícil fazer prognósticos, mas uma coisa e certa, o futuro da liberdade religiosa depende da sobrevivência da democracia. A tendência atual não e favorável, uma vez que a democracia ao redor do mundo apresenta sensível declínio. Nesse sentido, é notória a diminuição das liberdades públicas em 38 países, o que foi comprovado pelo relatório da Freedom House, de 2007. Daí porque o cientista político Larry Diamond alerta para a “recessão democrática”, como acontecimento mais importante que a “recessão econômica”. Ideologias totalitárias, apresentadas na literatura de George Orwell e em trabalhos minuciosos de Hannah Arendt, ainda provocam calafrios e perplexidades, porquanto são as mais reais ameaças à democracia e à liberdade humana no presente século. A luta pela liberdade identifica-se com a luta pela democracia. O direito à liberdade religiosa foi conquistado com muitas lutas, sacrifícios e derramamento de sangue. Assim, vale lembrar as contundentes palavras do jurista Von Ihering: “Aquele que anda de rasto como um verme nunca devera queixar-se de que foi calcado aos pés.”

E o maior desafio enfrentado pelos países ocidentais?

Penso que o maior desafio reside na preservação da cultura ocidental. Infelizmente, o Ocidente não valoriza o que tem de melhor: a cultura de paz e de proteção da pessoa humana, que foi construída com as contribuições da filosofia grega, do direito romano e, sobretudo, com o legado judaico-cristão. Há sinais de desprezo por essa cultura nos Estados Unidos e, também, na Europa. Tive essa convicção após a leitura do livro What’s so Great About Christianity, do indiano Dinesh D’Souza. Cumpre aos Estados Unidos preservar seu maior patrimônio cultural: a Primeira Emenda de sua Constituição, que estabelece a separação entre Igreja-Estado e a liberdade de expressão e de religião. Esse monumento à liberdade foi erigido com o equilíbrio entre as influencias iluministas e cristas.

(Publicado com autorização do entrevistado.)