sexta-feira, novembro 06, 2009

Um país perturbado

Nos anos 70, programas humorísticos, um deles com forte aceitação do público infantil, apelavam frequentemente para o surrado clichê da mulher como objeto, vulgarizando-a. “Ô, bicho bom!” “Tesooooouro!” “Bocãããoooo!” Nas décadas de 80 e 90, era comum que ninfas pós-adolescentes aspirantes à celebridade veiculassem em revistas de fofoca romances bem calculados com personalidades já famosas a fim de pleitear contratos de fotos com revistas masculinas e, talvez, oh, supremo anelo!, um programa televisivo infantil onde pudessem faturar milhões empurrando quinquilharias e tatibitátis musicais para toda uma geração de consumidores-mirins. Em minha geração, o comportamento sexual despontava por volta dos 14 ou 15 anos. A geração que me sucedeu reduziu significativamente essa idade. Hoje, meninas de 10, 9 e até 8 anos já começam a se vestir e a se maquiar como mulheres adultas.

O cardápio cultural vem tendo grande influência nesse fenômeno. Novelas, séries, filmes, comédias e reportagens, enfim, é difícil assistir a algum programa que não explore, quase sempre de maneira permissiva, a questão da sexualidade como elemento decisivo nas relações sociais. Mesmo campanhas públicas para prevenção de doenças sexualmente transmissíveis mais incentivam que previnem a irresponsabilidade sexual. Em um comercial, por exemplo, um garotão, talvez ainda menor de idade, bolina uma garota em plena rua enquanto essa o repele sem muita convicção – até que ele lhe mostra um preservativo embalado – e pronto! Ela já se anima toda (tão afoitos estão que a propaganda acaba sem que tenhamos certeza se ao menos irão procurar um local privado para o ato). Noutro comercial, um sujeito acorda de ressaca, nu sobre uma cama. Olha para os lados, confuso, sem saber onde se encontra. A seu lado, uma mulher igualmente nua (ou seria um travesti?), que ele não reconhece. Angústia. Súbito, vê no chão uma embalagem aberta de preservativo, e sorri aliviado. Mensagem da propaganda do Ministério da Saúde? A camisinha, e só ela, nos garante a santa paz. Então ficamos assim: o preservativo é o norte ético quanto a decisões sobre comportamento sexual. Demais fatores como afetividade, compromisso e valores morais tornam-se irrelevantes. E ai do carola que questionar essa visão de mundo!

Há que se lembrar que nossa imagem no exterior não é lá das melhores. Já em meados do século passado, celebridades do cinema mundial por cá aportavam em busca de liberdades não permitidas em seus países. Até alguns anos atrás a divulgação turística do Brasil incentivava o turismo sexual. Mesmo hoje nossas mulheres (mães, esposas, irmãs e filhas) são imaginadas pelo estrangeiro como ninfomaníacas insaciáveis e incontroláveis. Nas nossas praias a anedota já ficou batida: em vez de o biquíni esconder as pudendas, as moças usam as pudendas para ocultar o biquíni. Nosso carnaval dispensa comentários. Nossos bailes funk classificam as participantes, muitas delas adolescentes, em três categorias: as tchutchucas – moças nem sempre disponíveis para o sexo; cachorras – garotas de vida sexual eclética e regular; e as preparadas – que comparecem sem nada por baixo da minissaia a fim de facilitar diversos intercursos ali mesmo, no próprio local do baile.

Enfim, poucos aspectos da vida social e cultural do brasileiro deixam de ser, de algum modo, influenciados por uma visão licenciosa e impessoal do sexo.

O longo preâmbulo acima poderia indicar uma reprovação direta ao vestuário da jovem Geysi Arruda, que precisou sair de sua faculdade, a Uniban, escoltada por policiais. Pois a intenção é justamente oposta. Examinemos as diversas análises do caso veiculadas na imprensa. Na maioria das abordagens, o comportamento dos agressores foi condenado. Contudo, essa condenação quase sempre se mostrou uma mera concessão antes de se focar prioritariamente o ponto escolhido: a moça se comportou mal, a moça provocou – em suma, a moça apenas colheu o que plantou.

Isso nos remete a um passado próximo, quando se tornou inadiável a criação da Delegacia da Mulher. Os mais jovens não se lembrarão, mas há não muito uma mulher que fosse registrar queixa contra agressões físicas e sexuais era tratada com desinteresse e até desdém pelas autoridades, geralmente homens. “Foi bolinada, estuprada? Que roupa você estava usando? Qual era a sua maquiagem?” Ao sofrimento pela barbárie somavam-se o descaso e o preconceito. Imagine-se o horror de uma mulher ferida, brutalizada, violentada passando de vítima a responsável por seu próprio sofrimento. E dentro justamente da repartição pública destinada a proporcionar-lhe proteção física e jurídica.

Voltemos ao caso de Geysi. Vamos fazer todas as concessões possíveis, vamos dar crédito a todas as ilações mentirosas de seus detratores. Vamos supor que ela fosse uma meretriz que frequentava o ambiente acadêmico para expor sua... mercadoria (na verdade, ela fora à escola com o tal vestido para, saindo dali, comparecer a uma festa). Vamos supor que não usasse calcinha (mas usava). Vamos supor que ela cruzasse as pernas propositadamente, como Sharon Stone no filme “Instinto Selvagem”, a fim de exibir a genitália aos colegas, e que houvesse sido essa sua intenção ao subir a rampa do prédio. Vamos supor que a sociedade e a cultura brasileiras primassem pelo recato absoluto e que não houvesse em nosso país uma única mulher além de Geysi que cometesse, publica ou privadamente, todos os desatinos acima. Ainda assim seria o caso de que o linchamento ocorrido fosse alternativa aceitável a um julgamento justo e civilizado por parte da faculdade ou mesmo do Poder Judiciário? Chegamos a isso?

Revisemos. Dezenas de alunos (e alunas) participaram ativamente da agressão. E note-se: a motivação não foi de natureza sexual, como se pretende. Houvesse exclusivo e genuíno interesse sexual e a moça teria sido raptada ao final da aula para ser violada, talvez até assassinada, em algum lugar escuso; é assim que tarados agem. Estamos a tratar de um crime gerado unicamente por ódio – no caso, uma de suas piores exteriorizações, a misoginia; um ódio inclemente, sem a mais mínima compaixão – as cenas o provam. E esse ódio mostrou-se ainda mais evidente nas garotas que participaram do delito. Os guardas da escola o incentivaram por meio da omissão e até do deboche. A humilhação foi filmada e divulgada mundo afora, comprometendo por muitos anos a privacidade da vítima. Nos dias posteriores, a diretoria se eximiu, se omitiu e relativizou o crime cometido dentro de suas dependências. Na TV e nos jornais, oportunistas de sempre do infame mercado de livros de autoajuda concentraram sua reprovação no comportamento relativamente indesejável da garota em vez de repudiar exclusivamente seus agressores por crimes previstos na legislação de qualquer país (Atenção! Digo “comportamento relativamente indesejável” porque a nossa sociedade é vezeira em apreciar e mesmo idolatrar comportamentos incomparavelmente piores – vide a audiência cativa das temporadas do Big Brother, onde toda podridão, todo desvio de caráter que não ofenda o código penal é exibido em minúcias, incentivado, celebrado e sugerido como norma de conduta aos seus espectadores).

Resumo da ópera: por mais que se transfira para Geysi – ainda que com finalidade pedagógica – a responsabilidade pelo bullying coletivo que ela sofreu, a indumentária e os hábitos das jovens brasileiras pouco mudarão. Porém, mesmo que nossas jovens optem por roupas mais sóbrias em ambientes públicos, elas continuarão, durante as festas, a ser embebedadas, drogadas e seviciadas em banheiros, quartos e porões – com direito a seções de foto e filmagem para execração planetária. E haverá sempre, sempre e sempre aqueles (e aquelas) que dirão: “Que vacilo dessa otária!” “Também, quem mandou dar bobeira...”

Já os agressores que estudam na Uniban... Sua tímida e relativizada reprovação servirá de estímulo a atos semelhantes ou piores. A julgar pela interpretação do caso, o homem brasileiro sai desse lamentável episódio um pouco mais convencido de que suas balizas morais se subordinam à interpretação (fundamentada ou não) do comportamento de sua vítima em uma espécie de determinismo fatalista, que pode se estender também, por que não?, à trapaça, à fraude, à extorsão, ao espancamento e ao homicídio.

Ao centrarmos fogo em uma suburbana imprudente na avidez por reprovar um dos aspectos deletérios de nossa sociedade – a falta de pudor –, invertemos a gravidade dos elementos do incidente e perdemos a perspectiva essencial: criminoso e vítima se encontram em lados opostos da lei e é justamente isso que nos protege como indivíduos e como sociedade. Sempre que se fecham as portas da compaixão, abrem-se as porteiras do inferno. Sempre que nos distanciamos voluntariamente da vítima, nos aproximamos involuntariamente do criminoso. Espiritual e moralmente.

É pena, mas dessa vez a adúltera não escapou das pedras.

(Marco Dourado, Curitiba, PR, com exclusividade para o blog Criacionismo)