terça-feira, janeiro 19, 2010

A mesquinhês artística de Avatar

Setores midiáticos têm trombeteado as grandezas da superprodução Avatar. Mas as grandezas do filme vão pouco além dos efeitos especiais. O herói é um homem branco, ex-marine, que trabalha numa corporação e é escalado para promover a exploração e pilhagem dum planeta, desfazendo-se dos seus habitantes. Mas ele descobre que esses inocentes seres são amantes da natureza e vivem em harmonia com ela. São atletas por natureza, dançarinos, têm paz espiritual. Ele rapidamente consegue fazer parte da principal “tribo” deles, consegue proeminência lá e faz sexo com a mais bela mulher daquele planeta tão diferente, mas tão sedutor como ela mesma.

Esse herói vai “ajudar” os habitantes do “aeu” novo mundo a se defenderem dos inimigos, os quais, eles não percebem, podem destruí-los. Ele vai comandá-los para que seu mundo mais elevado sobreviva. Ou seja, ele, o homem civilizado e branco, é o único capaz de auxiliar outros povos; pois embora eles tenham suas habilidades, não são capazes de lutar contra uma civilização superior. Precisam de alguém vindo dessa civilização para ajudá-los. Como disse o articulista David Brooks, do New York Times (7/1/2010): "Isso baseia-se no estereótipo de que o homem branco é racional e tecnocrata, enquanto que os colonizados são espirituais e atléticos. Isso baseia-se na premissa de que os não-brancos precisam do Messias Branco para liderar-lhes em suas cruzadas. Na premissa de que a ignorância (ou falta de cultura) é que traz a graça de viver. Isso dá suporte à dupla forma de imperialismo em que os nativos podem ter sua história cruel por causa da maldade do seu colonizador, ou uma boa história por causa do bom colonizador. Mas sempre eles serão atores coadjuvantes na jornada de auto-admiração nossa (de nós, brancos e civilizados)."

É escapismo, óbvio, mas um romantismo benevolente é tão condescentente para o mal como um mal romance. Ou seja, uma repetição de Dança com os Lobos, O Último Samurai e outros filmes do heroísmo branco.

No fim do século 19 e início do século 20, isso tinha um nome: white man's burden (fardo do homem branco). Ou seja, pensadores criaram a teoria de que o homem branco tinha que dominar o mundo para civilizá-lo, e para isso deveria usar “suas” capacidades, rejeitar as ideias sempre retrógradas “deles”. E assim civilizar o mundo. Grandes cérebros acreditavam nisso como o abolicionista Joaquim Nabuco e o escritor Monteiro Lobato, para citar dois. Outro caso mais drástico disso foi o pensamento ariano de Hitler.

O Brasil desse período instituiu como política trazer a imigração europeia, pois achava que o branqueamento ajudaria na ascensão nacional. Bom, o país foi branqueado e, graças a isso, hoje temos mais mulatos e pardos do que negros; mas as mazelas são imensas especialmente entre os pardos e mulatos, os branqueados.

Por isso, lendas e crendices como as subliminares a Avatar podem ser bonitas e excitantes, mas trazem a falsidade de valores que sempre ameaçam a consciência. Como obra de arte, Avatar, por mais espetacular que pareça ser, em nada desperta a consciência para novos patamares.

Aí você pode perceber que outros artefatos culturais artísticos têm impacto bem diferente e despertam a consciência. Cito, por exemplo, o clássico da literatura inglesa tornado filme O Príncipe e o Mendigo. Nas entrelinhas das vidas das crianças “gêmeas”, cruzam-se a riqueza e a pobreza, e o leitor-espectador pode ver essas realidades constrastantes e a consequência disso. Posso ainda lembrar do livro, depois filme, Caçada ao Outubro Vermelho, no qual, ao mergulharmos na história de um submarino russo, descobrimos a história do oprimido povo da Ucrânia, que fora subjugada pela Rússia após a 2ª Guerra Mundial. Por último, vale lembrar o livro tornado filme E o Vento Levou, no qual são descortinados as teorias racistas e o triunfalismo aristocrástico religioso do sul dos Estados Unidos, que foi varrido, pelo menos parcialmente, pelos ventos da guerra civil americana. Nesses casos, a consciência é despertada a novos patamares de questionamento e de concepções a serem buscadas. Há uma lógica e antilógica artística forçando os espectadores a buscar valores que vão além do status quo. Há um despertar de sentimentos adormecidos, sentimentos que nascem do surpreendente desenrolar dos fatos fictícios, mas que trazem veracidade, possibilidades e sonhos.

Em Avatar ocorre o contrário. Apesar de toda roupagem, Avatar segue o status quo; o espectador só vê uma roupagem exuberante vestindo uma história na qual há um herói-messias, e pessoas impotentes a seguí-lo. Diante disso, quando a verossimilhança artística do filme segue a lógica da libertação efetuada pelo poder opressor - algo errático, como já vimos -, quando esse poder externo tem a bondade de conceder chances, e todos dependem dele, o Messias, que chegou a tanto por ser branco.

Logo, mesmo com a grandeza de cenários, seres voadores,etc., os espectadores desse filme jamais poderão sentir um impacto legítimo da quebra de paradigma para melhor; jamais descobrirão novas dimensões da consciência que é rebaixada não sei pra onde, pois em Avatar, com toda exuberância, só há uma repetição do óbvio, e com sofisticado disfarce garante que não há novos patamares a galgar.

(Silvio Motta Costa, professor da rede pública em Campinas, SP)

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