quarta-feira, janeiro 13, 2010

Projeto Atlanta: Colômbia (parte 8)

Estou viajando por trilhas de terra e pedras no noroeste da Colômbia. Minha companheira de viagem é uma bicicleta de alumínio com 21 marchas, feita de tubos grossos e roliços. Esses tubos a tornam pesada, por isso a chamo carinhosamente de “gorducha”. Até o momento, ela parece não se importar e temos um excelente relacionamento. Viajamos uma média de 100 km todos os dias e juntos nesta maratona esportivo-evangelística já ultrapassamos a marca dos 4.000 km pelas estradas do Brasil, Venezuela e Colômbia. Ainda precisamos rodar mais de 10.000 km para alcançar nosso alvo, a cidade de Atlanta, na Geórgia, EUA.

Às vezes, as coisas não são bem como a gente pensa. Na Colômbia, todos me diziam que seria muito complicado chegar de bicicleta até a cidade de Turbo. Caso eu conseguisse atravessar essa região perigosa em paz, era só pegar uma lancha ou barco e descer no Panamá para voltar a encontrar estradas e seguir pela Rodovia Interamericana rumo ao estado do México. Fiz o percurso “perigoso”. Alcancei Turbo. Pensei que agora estaria entrando no paraíso, ou seja, após um “passeio de lancha”, voltaria a rodar pela Rodovia Interamericana...

Mas, como disse acima, certos acontecimentos na vida, às vezes, não vivemos bem da maneira como esperamos. Por falta de um conveniente suprimento financeiro, deixei de cruzar para o Panamá em dois dias para fazê-lo agora em cinco. As etapas previstas são as seguintes: Turbo-Unguia (lancha), Unguia-Acandi (por trilhas na selva), Acandi-Capurganá (lancha), Capurganá-Puerto Obaldia (lancha) e, por último, Puerto Obaldia-Miramar (primeira cidade panamenha que tem estradas de acesso à Interamericana).

Tenho comigo três mochilas: uma no bagageiro traseiro e outra no dianteiro. As duas primeiras levam objetos de uso estritamente essencial. Se algo está pesando e fica sem utilidade por algum tempo, é logo descartado pelo caminho.

A terceira mochila é invisível. Não sei nem mesmo onde está localizada. Eu poderia chamar essa mochila extra de “mochila da fé”. Isso mesmo. Creio que carrego algo que não tem peso, forma, cor ou tamanho definido. Algo que não posso tocar. Não posso ver... Só posso sentir. Até aproveito para definir biblicamente o que tem no seu interior: “Fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem.” Ou seja, quando enfio a mão nessa mochila especial, só vou conseguir tirar algo, se exercer uma fé extrema. E me alegra saber que é exatamente o pleno exercício desta fé que me faz uma pessoa agradável a Deus.

Tenho consciência de que fui muito audacioso diante dos Céus quando saí do Brasil dizendo que estava indo aos Estados Unidos participar da 59ª Conferência Geral da Igreja Adventista montado em uma bicicleta. Imagino o alvoroço que provoquei quando a notícia foi alçada ao trono de Jesus Cristo.

Quero antecipar deixando registrado que essa atitude ousada, esse modo de ser destemido, foi Ele quem me ensinou, pois, no “Manual” em que aprendi a lutar por alcançar “aquilo que não se vê”, diz assim: “Sem fé é impossível agradar a Deus.”

Não posso nem devo me comparar a Noé, Abraão, Moisés, Josué ou Davi. No entanto, entendo que vivemos em um mundo no qual precisamos exercer a fé desses ilustres antepassados. Temos que crer que há uma “arca da salvação” (a igreja). Temos que nos esvaziar de nós mesmos e “doar nossa vida”, para recebê-la de volta revestida da imortalidade. Devemos avançar sobre os “mares” e “rios”, na certeza de que chegaremos a um porto seguro. E, quando houver inimigos que pareçam imbatíveis por serem maiores e mais fortes do que nós, confiemos que não lutamos sozinhos e que eles cairão vencidos a nossos pés.

Essas considerações retratam exatamente o momento por que passo agora. Cheguei nesta travessia de Unguia para Acandi em um “beco sem saída”.

Desde que inicie este desafio, nas estradas de Roraima, na região norte do Brasil, algumas vezes me deparei com encruzilhadas levando a vários destinos. Porém, sempre havia uma placa ou onde buscar a informação da direção certa a seguir. Quando deixei a vila de Unguia, fui avisado de que iria me perder. Mas, devido à audácia, à ousadia, à intrepidez, à autoconfiança de que “não ando só”, saí na fé de que algum milagre ocorreria caso me visse perdido. E vivo isso neste exato momento. Estou parado em frente a uma porteira. Há trilhas à direita e à esquerda. Há outra em frente.

A pergunta é: Qual o caminho certo? São dez da manhã e estou sozinho. Em meus ouvidos ainda soam as palavras do irmão Jairo: “Você ficará perdido. Você precisará de ajuda.”

Onde buscar a informação? Com as vacas gordas da fazenda que pastam preguiçosamente sem dar ouvidos a ninguém? Com o cavalo negro, de porte altaneiro e olhar orgulhoso, que ouço relinchar nos campos verdes e que não para de afinar os cascos? Com o gavião? Ave habitante das nuvens, que passa em voo rasante e desaparece no ar, sem ter nada para falar. Ou será que as formigas roçadeiras que avançam em marcha como um exército além dos moirões da porteira, seguem na direção do meu destino? Mas, infelizmente, não vejo a “jumenta de Balaão” para lhe perguntar que rumo devo seguir.

Certamente não estou só por aqui. Lindos animais me cercam junto com um céu todo azul.

Depois de alguns minutos vivendo a situação de estar perdido pela primeira vez, meus pensamentos são interrompidos pelo barulho de uma moto. Ela se aproxima de mim devagar e, montado nela, vem um rapaz magro, moreno, de óculos e vestido de bermuda jeans e camisa de manga azul. O termômetro da autodefesa entra no vermelho até que vejo um sorriso em seus lábios e ouço sua voz dizendo:

– Ola, irmão! Como está a viagem?

Respondi ao seu sorriso e a sua pergunta:

– Está difícil. Não sei qual caminho seguir para chegar a Acandi. Estava exatamente esperando aparecer alguém para me dar essa informação.

– Eu conheço as trilhas para Acandi e fui enviado pela igreja para escoltá-lo até uma parte em que não se perderá mais. Acrescentou o simpático e sorridente jovem.

Vários atletas já se dispuseram a me acompanhar em alguns trechos desta travessia continental. Em Pedraza, Venezuela, dois irmãos montados sobre bicicletas de corrida, seguiram-me por 8 km. Em Bucaramanga, Colômbia, quatro ciclistas adventistas, três em bicicleta e um em carro, foram meus companheiros por 32 km. Em Barbosa, também Colômbia, outros dois atletas do pedal juntaram-se a mim por 15 km. Porém, todos envolvidos em seus compromissos diários, tiveram que retornar ao lar.

Por isso estou surpreso porque esse rapaz está dizendo que foi “enviado” para me guiar pelas trilhas até Acandi.

– Você é da igreja de Unguia? – torno a perguntar.

– Sim, eu estava no culto ontem à noite. Escutei sua mensagem. Quero acompanhá-lo, guiá-lo e protegê-lo nesta selva até próximo a Acandi. Vamos, siga-me!

Após essa resposta, ele abriu a porteira, segurou-a e pediu-me que entrasse. Ao ingressar por esse caminho, a pequena estrada de pedras, lama e areia acabou. A partir desse ponto o percurso era de grama e pasto. Andar por asfalto com uma bicicleta já se gasta muita energia. Viajar por estradas irregulares contendo pedras, areia ou barro, é mais difícil ainda. Agora andar por pasto alto e grama, é muito, muito mais desgastante.

Este é, no momento, o cenário que estou enfrentando aqui no Golfo de Darién, noroeste da Colômbia. A região à minha esquerda é tomada por florestas verdes e com árvores altas e exuberantes. Mata fechada. Parte preservada e algumas áreas tomadas por fazendas com algumas cabeças de gado.

Do meu lado direito, ao longe, segue o Mar do Caribe. Possui águas de um verde turquesa que deixa a vista extasiada. Como, além de missionário, de “caçador de almas”, aprecio muito ser um explorador de paraísos ecológicos, estou muito à vontade neste lugar.

Más só posso dizer, sentir e respirar a beleza em volta após a chegada do meu “anjo” guia e protetor. Antes de ele aparecer, meus passos estavam sendo calculados e meus olhos perscrutavam toda pessoa suspeita ao longo destas trilhas. Por exemplo, jamais invadiria a porteira de uma fazenda sem antes ter alguma autorização do proprietário ou gerente.

Porém, estou seguindo o jovem motoqueiro por toda parte. Ao terminarmos de cruzar uma fazenda ou sítio, logo ele descobre um caminho estreito, uma trilha ou uma nova porteira e avança, sempre pedindo para segui-lo. Assim vamos atravessando diversas propriedades sem retornarmos mais para a estradinha de terra por onde comecei a viajar inicialmente.

Ao indagar sobre o porquê de estarmos passando por estas zonas rurais, ele me diz que é um atalho e que o caminho é mais seguro. Assim, sigo-o “de olhos fechados”, sem lhe fazer mais perguntas. Ele avança com sua moto por trilhas nas florestas, nas fazendas e sítios. Atravessa charcos e rios e sempre me vendo na sua retaguarda.

Ele diz ser um irmão de minha igreja e eu o tomo como um anjo enviado por Deus. Não fosse por estar aqui, após verificar o tanto de obstáculos que já passamos, certamente estaria perdido, desorientado e aflito.

Depois de horas pedalando duramente nestas veredas descalçadas, sinto fome e sede. Parecendo adivinhar meus pensamentos, o “anjo do Senhor” encosta a moto junto à gorducha e pergunta se estou bem. Digo-lhe que estou suportando o cansaço, porém, tenho fome e sede.

Ele me deixa. Avança sozinho. Sai da fazenda e entra numa floresta. Faz várias curvas e pára adiante. Quando o alcanço, após entrar em um trecho arborizado, sinto meu tênis molhar numa corrente de água. Quando olho a esquerda, vejo um veio forte de água cristalina, doce e fresca descendo por entre as pedras lisas.

Nesse lugar fizemos a primeira parada longa do dia. Tomei banho nas águas e matei a sede. Aproveitei para dividir com o anjo a marmita que a irmã de Inguia me ofertou. Arroz, ovos mexidos e banana frita.

A seguir, continuamos a jornada por terrenos difíceis de pedalar. Voltamos a atravessar as propriedades rurais e, já iniciando a tarde, entramos outra vez numa parte de florestas. E uma vez nesta, verifiquei que havia próximo um rio e o meu guia motoqueiro se adiantou e cruzou-o por uma ponte de cabos de aço e piso de madeira.

Quando fui seguir o mesmo caminho, ao chegar junto à ponte, percebi que estava dentro de um acampamento de soldados. Olhei em volta e vi várias barracas de tecido camuflado e roupas estendidas em varais. Também no meio do camping tinha uma panela grande em um fogão de lenha improvisado.

Logo um dos soldados, vestindo apenas short, sem camisa e boné na cabeça, correu em minha direção e fechou a passagem para a ponte. Outros observavam seu gesto apenas assentados preguiçosamente com seus fuzis encostados sobre um tronco de árvore. Vi ainda outros com facas na mão cortando madeira para a panela.

Após ter sido parado, imaginei estar em uma destas situações: (1) no meio de uma milícia do exército das Farcs, ou (2) no centro de um pelotão do exército colombiano.

No primeiro caso, muito triste, pois eu não estaria seguindo um anjo do Senhor, mas um inimigo que me conduziu direto a uma cilada. No segundo caso, menos mau. Seria apenas mais um obstáculo a enfrentar, porém, também perigoso caso fosse identificado como estrangeiro.

Ao ver o soldado estático diante de mim, impedindo a passagem para a ponte, meu coração começou a bater forte. Meu “anjo” guia estava do outro lado e seu olhar foi “disparado” em minha direção.

Há um soldado do exército da Colômbia adiando meu grito de vitória neste dia. Preciso vencê-lo e prosseguir minha jornada.

Estou tão longe de Atlanta. Meu sonho. Meu destino. Meu alvo. Atlanta é na Geórgia, Estados Unidos.

Venha comigo, porque sinto, sinto mesmo que Deus está aqui.

Até breve...

(George Silva de Souza, atleta e autor livro Conquistando o Brasil)

Nota: O Atleta da Fé, George Silva, está enfrentando grandes dificuldades financeiras para prosseguir nessa missão esportivo-evangelística e precisa urgentemente fazer uma revisão na bicicleta. Ele não me pediu isso, mas eu convido: se você puder colaborar de alguma maneira, escreva para ele: georgepalestras@yahoo.com.br