sexta-feira, abril 16, 2010

A pedofilia e o decálogo em branco

Oi, Michelson. Li o seu post com o texto do pastor Luiz Gustavo (“Mr. Dawkins, qual o problema com a pedofilia?”). Gostei muito e poderia acrescentar algumas considerações. Primeiramente, é incontestável a solidariedade ao biólogo. Nada atenua a barbárie de se brutalizar e degradar uma pessoa, ainda mais em idade tão frágil e tenra como a infância. Desconheço quem dela não se repugne. Por isso, quando a burocracia eclesiástica de uma igreja cristã, por uma questão de conveniência ou corporativismo, releva ou acoberta a tara de um maníaco, são enxovalhados bem mais que os valores e os princípios cristãos. Aos olhos do mundo, o próprio nome de Deus é rebaixado à vileza de Seu pior inimigo – e por Seus próprios filhos! Assim, para início de conversa, cada uma das milhares de vítimas desse tipo de molestamento sexual, Dawkins entre elas, merece que TODO o clero da igreja que abrigou o pervertido (não importa se use terno, batina ou mitra) vista sacos de estopa, cubra a cabeça com cinzas e implore publicamente por perdão – literalmente de joelhos. Tanto à vítima quanto a Deus. Aí, sim, a cerimônia do lava-pés voltará a fazer sentido na liturgia dessas denominações.

Entretanto, purgar unicamente as igrejas cristãs desse flagelo não põe termo à questão. Dawkins sabe muito bem que até o retiro ateu para crianças criado por ele pode abrigar um desses monstros. E além dos pedófilos há os hebéfilos (que sentem atração sexual por meninas púberes ou adolescentes) e os efebófilos (atraídos por garotos que adentraram na puberdade). Todos eles costumam ingressar em atividades e ocupações que lhes propiciem interação com suas vítimas por meio de uma relação de poder e hierarquia. E aqui estamos tratando não somente de clérigos, mas de professores, pediatras, treinadores esportivos, orientadores vocacionais ou ocupacionais, líderes de grupos de escoteiros, bandeirantes e lobinhos – a lista é longa. Ora, enumeramos aqui profissões honoráveis, algumas imprescindíveis. O agravante é que, à falta desses biombos, restará ao pervertido abusar dos próprios filhos, sobrinhos, enteados e vizinhos. Em casos extremos, se tornará predador ambulante, talvez um serial killer. Logo, a questão não é o habitat do pedófilo, mas a sua gênese – as condições necessárias para que sua tara aflore e viceje. Sabemos que pedófilos existem há muito. Mas na profusão atual? Parece-me que a atual doxa filoateísta, a qual apregoa, entre outras coisas, que a plenitude da satisfação sexual se tornou, mais que um direito, um imperativo para a felicidade e afirmação pessoal, essa, sim, influi na relativização dos valores individuais – em certos casos, misturando criminalidade com patologia.

O problema de um ateu não é a falta de princípios. Muitos os têm – e por vezes nobilíssimos. A falha decorre de os ateus não reconhecerem valores que independam da subjetividade humana. Isso reduz tais princípios a caprichos episódicos e circunstanciais. Inegável reconhecer que não é seguro morar em edifícios construídos nesse terreno; a rigor, não é possível sequer construir sobre esse terreno. Chamou-me a atenção uma vez o filme “O Advogado do Diabo”. Nele, Al Pacino interpreta o Demônio que tenta arregimentar um advogado para suas hostes. O ponto alto se dá quando o humano, a exemplo de Eva, tenta arrazoar com Satanás mostrando-lhe por que seria justo renegá-lo. Satã então compara os escrúpulos morais do rapaz a um saco bem pesado de tijolos. Carregá-los, argumenta, traz somente bolhas, calos e dores lombares – além de tornar-lhe a jornada mais penosa, desvantajosa em comparação aos que não se submetem a tal fardo. Por uma questão de pragmatismo, é inevitável que mais dia menos dia o ateu – não todos, é certo, mas boa parte – conclua que seus pruridos de consciência não passam de fricotes motivados por ele ter que provar, mesmo inconscientemente, que não é pior que um religioso. E aí o saco de tijolos morais será esvaziado um a um – como alguém que quebra o regime devorando uma caixa inteira de bombons.

Richard Dawkins, felizmente para nós dois, não tem conhecimento de minha existência e opiniões, e se de mim soubesse certamente não daria importância. Menos mal. Quanto a mim, preocupo-me exclusivamente com os que ele arrebanha. Não me traz satisfação alguma desancar suas proposições espetaculosas – invariavelmente levianas e temerárias. Já escrevi alguns textos condenando-as, um deles intitulado “A alcateia de Jezabel”. Texto duro, mas pertinente, quando expus que aspirantes a demiurgo geralmente transitam do autoengano ao delírio, pois suas melhores intenções quase sempre acobertam os piores instintos – tanto do pretenso visionário quanto de seus entusiastas. E geralmente descambam para as mais inconfessáveis pulsões.

A visão de um mundo sem Deus não é monopólio de Dawkins embora ele tenha se tornado seu mais notório defensor. Mas para o que ela realmente nos acena? Arrisco dizer que, pela falta de absolutos, essa distopia – utilíssima para reduzir ao mínimo a lista de consensos morais a fim de maximizar as liberdades individuais – produzirá, fatalmente, um decálogo em branco. Por quê? Porque diante da inevitabilidade da morte seguida de inexistência restará ao indivíduo, enquanto ainda pode, colocar o coração onde estiver o seu tesouro – mesmo que esse tesouro seja o corpo nu de uma criança indefesa.

(Marco Dourado, analista de sistemas formado pela UnB, com especialização em Administração em Banco de Dados)