segunda-feira, agosto 30, 2010

Literatura que redime bandidos

Ladrão, assassino, rebelde e salteador. Depois de ler os quatro evangelhos, José Roberto Torero voltou nas páginas e passou o marcador de texto em cima dos adjetivos grudados ao nome de Barrabás. Até então, ele estava na dúvida sobre quem seria o protagonista da sua versão para o Novo Testamento. Pensou em Maria Madalena, em Judas e até em Jesus Cristo, mas achou todos óbvios demais. Barrabás - um homem sobre quem se sabia muito pouco além dos tais adjetivos - não era nada óbvio. Barrabás era o cara. “Ele era mais amado que Jesus! Quando o povo teve que escolher, escolheu Barrabás”, diz o escritor, que trabalhou em dupla com Marcus Aurelius Pimenta, seu parceiro em mais de dez projetos literários. “O bom de um personagem assim, com tão pouca informação, é que se pode criar toda a história dele. Os coadjuvantes são os melhores narradores de uma história.” [...]

O livro, é bom que se diga logo, não é para ser levado a sério. Os autores narram a história de Barrabás desde seu nascimento - também fruto de uma concepção imaculada, ainda que menos idílica - até a crucificação de Jesus. Eles levaram três anos e meio e escreveram 17 versões. O texto junta referências bíblicas (o Canto dos Cânticos, por exemplo, é transformado em uma cantada amorosa), expressões da época, informações de enciclopédia, Padre Antônio Vieira e muito humor.

“Eu nunca tinha lido o Evangelho e descobri que é uma leitura maravilhosa. No primeiro não há alusão à virgindade de Maria e nem Cristo ressuscita”, diz Torero, que vive em São Paulo, mas esteve de passagem pelo Rio na semana passada, quando conversou com o Globo sobre o livro.

Torero e Marcus Aurelius, ambos jornalistas, misturam personagens reais e fictícios, descritos em falsos perfis. Assim, Barrabás, após perder os pais (uns tais de José e Maria) no massacre de Genesaré (um episódio verdadeiro), será criado por Atronges (um ladrão que realmente existiu) e um bando de malucos que parecem tirados de um filme dos Trapalhões.

A pesquisa que sustenta a narrativa dá de lambuja ao leitor informações geográficas e religiosas. Torero conta que as reuniões de criação - em que o mais difícil é convencer as respectivas mulheres a ficarem de fora - são muito divertidas. Os dois não têm escrúpulos em mexer nos textos um do outro, sempre que humor e ritmo exigem. Além das fontes formais, trabalham com a memória afetiva e um monte de referências pop. [...]

“Aos 15 anos, passei a duvidar de tudo. Aos 20, virei ateu”, diz o autor, ansioso com a repercussão do livro. “Acho democrático: será capaz de desagradar igualmente a católicos e judeus.”

Marcus é filho de protestantes e capaz de citar passagens da Bíblia de cabeça. Já Torero foi batizado, mas não fez Primeira Comunhão. Sua mãe já foi católica, já foi mística, não tem medo de umbanda e agora é seguidora do guru indiano Sai Baba. Nada que influenciasse o filho. Em 47 anos de vida, a única religião que merece a devoção de Torero é o Santos Futebol Clube: “Olha o Neymar, cara... No Neymar eu acredito.”

(O Globo)

Nota: Ainda que os autores encarem seu livro como “brincadeira”, muita gente acaba influenciada por esse tipo de literatura. Eles até podem ter pesquisado a geografia e os costumes neotestamentários, mas e a teologia que permeia as histórias? E os detalhes das entrelinhas, percebidos por aqueles que realmente estudam a Bíblia? Por exemplo, o livro parece ignorar o fato de que a turba que condenou Jesus foi manipulada para escolher Barrabás em lugar do Salvador. Barrabás não era “o cara”. Foi beneficiado pela ocasião. Dá para dizer que estava no “lugar certo e na hora certa” (para ele). Além disso, "evangelho" quer dizer boas-novas. Que boa-nova pode vir de um ladrão não convertido? O livro de Torero segue a tendência de redimir bandidos (algo que o falecido Saramago também procurou fazer com seu Caim e mostra que muitos ateus continuam interessados em temas religiosos (ou talvez incomodados com isso).[MB]