segunda-feira, outubro 25, 2010

O preço de discutir doutrina religiosa na arena política

Em 25/8/2010, em um artigo intitulado “Pior do que a Gripe Suína” (publicado no site Observatório da Imprensa), apontei os nefastos perigos da fusão Igreja-Estado promovida pelo governo Lula, que assinou uma concordata com o Papa Bento 16. Articulistas de vários jornais questionaram energicamente esse primeiro desmando da diplomacia brasileira – que, aliás, fez outros desmandos lamentáveis: o segundo apoiando um presidente bandido (Zelaya, de Honduras) que passou pelo que passou por descumprir a Constituição do próprio país; o terceiro apoiando um regime ditatorial, belicista e desumano como o do Irã, sendo por isso forçado pela ONU a voltar atrás.

Convém lembrar que Lula não foi o primeiro a, por motivos politiqueiros, buscar ganhar votos religiosos prestando favores a autoridades religiosas em troca de outros favores escusos destas, em favor do seu plano de governo eterno. Constantino, a partir de 313 d.C., iniciou um processo de “conversão” do Império Romano ao cristianismo, e ao mesmo tempo promoveu a “conversão” do cristianismo ao romanismo e seu paganismo. Depois disso, todos sabem, o Império se esfacelou e teve origem a Europa medieval, um continente cheio de guerras religiosas, superstições e atraso.

Depois, a partir do fim do século 13, Portugal e Espanha, leais à Roma, expulsaram os judeus e árabes dos seus territórios, perderam muitas riquezas e muita massa pensante, e se empobreceram tremendamente, apesar das vastas colônias que tinham na América. Mas a Inglaterra de Henrique VIII rompeu com a Igreja, e em 1534 também outros países fizeram o mesmo, seja por motivação religiosa (Alemanha e países nórdicos da Europa) ou política (a França revolucionária, dentre outros).

Contudo, em 1929, o ditador Mussolini tomou providências para que o Vaticano voltasse a ser um Estado político. Hitler sabia das negociações e também assinou uma concordata com a Santa Sé em 20/07/1930. Isso foi bom para os católicos? E para a Igreja? Só sabemos que isso foi um sinal verde para o Furher silenciar, perseguir, massacrar e matar a maior oposição que se erguia contra suas ambições (o Partido de Centro, cujos membros eram católicos alemães); o que, desnecessário dizer, ele fez mais do que prontamente.

Vale lembrar que o ditador fascista Francisco Franco, que prometera matar até a metade do povo espanhol, se essa metade fosse comunista – o que fez promovendo a encarniçada guerra civil espanhola –, assinou a concordata com o Vaticano. Além do ditador português, Salazar também assinou o mesmo tipo de concordata com a Igreja nos anos 40 do século 20.

Nessa época, Roosevelt tentava reatar laços políticos entre os EUA e a Santa Sé, mas seus desígnios foram bloqueados pelos imensos protestos dos protestantes conservadores. Truman também tentou, mas teve que recuar pelo mesmo motivo. Vale lembrar que quem rompeu laços diplomáticos com a Santa Sé foi Abraham Lincoln, tido até hoje como o maior presidente da história dos Estados Unidos.

Contudo, finalmente em 1984, o então presidente Ronald Reagan reatou os laços políticos entre EUA e Vaticano. Para isso, teve que alterar a legislação do País, que proibia esse tipo de laço. Mesmo assim, muitos questionam a legalidade disso, haja vista a primeira emenda constitucional que separa definitivamente a Igreja e Estado. Vários países seguiram o exemplo norte-americano.

Quando o então senador Arthur Virgílio (PSDB) disse que leu a concordata feita com Mussolini e que a nossa foi feita de modo a não ferir a democracia, isso desperta, no mínimo, três questionamentos sérios:

1. É lamentável que um legislador brasileiro espelhe as políticas que há de promover em exemplos como o de um fascista. Esse exemplo deveria ser categoricamente rechaçado

2. Historicamente, países que se envolvem em querelas teológicas gastam suas energias e recursos inadequadamente, causando a fuga de cérebros e meios de crescimento.

3. Seria mais produtivo para ele e todo o Senado, bem como para a câmara dos deputados, espelharem-se em bons exemplos advindos daqueles que trouxeram luzes novas, crescimento institucional ao País, como José Bonifácio, Rui Barbosa (patrono do Senado), Joaquim Nabuco; todos contra essa mistura que causa atraso. Ou então inspirar-se em grandes nomes internacionais, tais como Lincoln, Jonh Kennedy, rainha Elisabeth I da Grã-Bretanha, para citar alguns. Fora os pais fundadores dos Estados Unidos, como Washington, Jefferson, Madison e Roger Williams; esses também contra essa mistura que causa atraso.

Há grandes temas a serem discutidos e, infelizmente, com o envolvimento do Brasil em aspectos religiosos que ferem a ética laica, caminhamos para o atraso. Além de Rui Barbosa, promotor dos mais significativos conceitos sobre o real sentido das leis, e José Bonifácio, que levantou a importância da preservação e bom uso das riquezas naturais do nosso País, podemos citar também Darcy Ribeiro e Paulo Freire, que promoveram movimentos que culminaram em grandes mudanças e melhorias em nossa legislação educacional; os irmãos Villa-Boas, que promoveram a importância de se respeitar a cultura indígena e integrar o índio ao Brasil moderno; Juscelino Kubitschek, com a ideia de modernização rápida deste País e a integração de todos os rincões que o compõem; Teotônio Vilela e Ulisses Guimarães, que promoveram o direito às eleições diretas.

Quando a religião bajula o governo, ela se silencia diante das tremendas injustiças sociais que ele promove (quando ela deveria combater essas injustiças). Tapa os olhos para escaramuças e enganações, quando deveria exigir dos governantes a ética cívica. Faz vista grossa para assassinatos e violência, quando deveria exigir a proteção dos cidadãos e defender os direitos humanos. Mantém a mesma atitude diante de roubos e extorsões dos cidadãos por tributações pesadíssimas, quando deveria exigir que os homens investidos de autoridade fossem zelosos guardiões da fazenda pública em favor do fortalecimento de melhores condições de vida para seus cidadãos.

Parece uma responsabilidade pesada a uma entidade espiritual, mas, falando em cristianismo, devemos lembrar que Jesus é o Bom Pastor que zela por Suas ovelhas. Cada cristão deve zelar pelo seu próximo (seja esse cristão ou não), pois ele deve imitar seu Mestre e Senhor.

Infelizmente, no Brasil atual, temos visto muitos líderes religiosos católicos, protestantes e evangélicos rodeando os palácios do poder. Nesse processo, adulando e lisonjeando os políticos, deixando de cumprir seu papel de exigir que valores éticos comuns ao bom senso e a todas as crenças sejam seguidos. Por isso, as opressões e injustiças são perpetradas energicamente, sem ser contestadas.

Fruto dessa adulação e omissão, esses líderes recebem auxílios para seus projetos, sejam eles televisivos, “missionários”, etc. Projetos esses que pouco têm feito para desfazer ou diminuir as opressões, injustiças e pobreza; embora promovam o marketing das igrejas e apareçam muito. Além disso, muitos serviços sociais têm sido jogados pesadamente sobre os ombros do governo e as igrejas têm faltado com a liderança para assumir responsabilidades nessa área, responsabilidades que envolvem o contato direto com as pessoas necessitadas, como escolas, auxílio às famílias carentes, auxílio médico, etc.

Historicamente, o catolicismo brasileiro é muito criticado por silenciar ante as opressões dos poderosos, desde o período colonial até hoje; por outro lado, muitos têm elogiado os setores da Igreja que contestaram o regime militar. Há notória diferença aí: os católicos que lutaram contra a ditadura acreditavam num Estado laico; já os ditadores, num Estado apoiado pela religião que se submetia à sua tirania em troca de favores especiais.

Quando a religião se amesquinha para agradar a um governo, ou se ensoberbece para impor dogmas sem motivar corações, o espírito público não é refrigerado. Ao contrário, ela se torna cúmplice das tremendas injustiças, escaramuças, assassinatos, desvios éticos, pois fica calada e como um atalaia adormecido sobre o muro de uma cidade prestes a sofrer ataque, será trucidada com todos pelo voraz e cruel inimigo que invade. Aconteça o que acontecer, a religião será culpada, pois não teve a ousadia que suplanta os interesses momentâneos para apontar rumos para o bem de todos sob sua influência.

“A religião, apoiada no monopólio civil (do governo), não pode senão adulterar-se, enfraquecer-se, decair.” “À medida que a influência temporal da igreja se amplia, declina sua autoridade moral.”[1]

Discussões de cunho ideológico e religioso inevitavelmente ocorrem em todos os ambientes, inclusive no ambiente político. Na verdade, a política deve ser uma arena de livre discussão e de sincera busca de soluções a fim de socorrer os milhares de homens e mulheres, adultos, crianças, jovens e idosos. Esse pragmatismo deveria comover nossos líderes a se empenharem por grandes projetos.

Além da crise religiosa já mencionada, estamos vivendo algumas crises gravíssimas que, ao invés de serem enfrentadas, têm sido abafadas e estão aumentando. Eis aqui as principais:

1. DÍVIDA PÚBLICA. Devido aos mecanismos de juros altos e maquiações feitas para atrair capitais, tem aumentado essa dívida, o que impede que tenhamos bons serviços públicos na Previdência, infraestrutura, saúde, segurança e educação; pois, por causa desse ônus, o governo pouco tem a seu dispor para essas áreas.

2. DESEMPREGO. Apesar de o nível de emprego ser positivo atualmente, ainda temos muitos desempregados, e mais: muitos subempregados, ou seja, pessoas que trabalham sem carteira assinada e em condições aviltantes. A isso agrega-se o despreparo escolar da maioria dos trabalhadores.

3. GLOBALIZAÇÃO. Na concorrência por mercados globais, o Brasil está perdendo, pois o custo-produção dos nossos produtos os tornam caros diante dos similares de outros países; além do mais, temos baixíssima produção de itens de média e alta tecnologia, que são aqueles que trazem valor agregado, ou seja, geram mais empregos no mercado interno. Nossa maior produção continua sendo a mesma dos tempos do Brasil Colônia: os insumos agrícolas como café, milho, açúcar.

Acrescente-se a isso as políticas atrasadas que mantêm imensos latifúndios; as indústrias irresponsáveis, que, juntos, estão poluindo e destruindo a natureza.

Mas, tendo o respaldo do discurso dispersivo promovido por um espírito de falsa religiosidade dentro do Estado, somos forçados a “ver santificar a violação dos direitos mais invioláveis, dourar e amar a todas as deformidades legislativas, desconceituar e procrastinar ilimitadamente as mais instantes reformas com a simulação de reformas premeditadamente agravadoras do mal”.[2]

As atitudes politiqueiras e não políticas dos representantes dos vários entes do poder têm agravado as crises supracitadas e isso nos leva a tecer os comentários abaixo.

Como foi dito, Ronald Reagan reatou laços especiais com a Santa Sé em 1984. Reagan alcançou o poder afagando os mais ricos e os conservadores católicos e evangélicos. Ele desestatizou tudo o que pôde encolhendo o poder do Estado. Dentro de suas possibilidades, desfez todas as conquistas de socorro social promovidas pelo New Deal (de Roosevelt) e pela Grande Sociedade (de LBJ). Cortou os impostos dos milionários; combateu as políticas de inclusão racial como as cotas (assim como nos anos 60, juntamente com o senador Goodwater, colocara-se na porta de uma escola para que alunos negros não entrassem). Assumiu o País que era o maior credor do mundo em 1980. Sob seu governo a bolsa de Nova York quebrou duas vezes e entregou para Bush pai o país que era o maior devedor do mundo em 1988.

Bush pai sabia que seu antecessor alçara as alturas com apoio religioso e por isso não desperdiçou a mesma oportunidade. Assim, questões como o aborto (que num viés radicalmente conservador envolve proibir pesquisas com células tronco e proibição de quaisquer meios de controle de natalidade como laqueadura ou vasectomia), casamento gay e divórcio tomaram à frente do discurso político. A motivação para guerras, com brados de ufanismo, foi exacerbada e temas mais importantes para o governo foram abandonados.

Temas como infraestrutura, gastos públicos, inclusão social, imigração e desvios de dinheiro promovidos pelo sistema financeiro foram deixados de lado. Houve alívio com Bill Clinton, mas foi passageiro. Contudo, Bush filho exagerou em todo o conservadorismo e agora o país caiu nessa crise da qual todos sabem.

A questão religiosa no Brasil

Diante do exemplo acima, além de outros, não fica difícil constatar que mau agouro nos espera; até porque a estrutura política e econômica brasileira é bem mais frágil que a norte-americana.

Falando especificamente do PT, vale lembrar que foi Lula quem assinou a concordata com a Santa Sé, em Roma. Juntamente com Dilma, fizeram-se fotografar, também percebendo a intrusão da religião. Dilma ressalta seus supostos valores morais em sua propaganda política; enquanto o PT reclama da mistura que ele mesmo promoveu.

Já Serra se apresenta como fiel cristão, homem de bem e honesto. O assunto do aborto toma a frente, quando já temos uma legislação conservadora, mas equilibrada sobre o tema, que permite aborto em caso de estupro ou perigo para a vida da mulher, além de muitos hospitais estaduais e municipais promoverem a laqueadura em mulheres de baixa renda.

Contando com marqueteiros, com estardalhaços da mídia (que, infelizmente, anda muito desnorteada em alguns casos), os últimos quatro anos de Lula se demonstraram não progressivos, assim como o governo Serra em São Paulo, pois não mudou muito a politicagem que há no resto do Brasil. Esperava-se mais de São Paulo, até porque na bandeira da Grande São Paulo (capital), onde Serra foi prefeito, se lê: NON DUCOR DUCO” (Não sou conduzido, conduzo).

Seria mais interessante se tivéssemos uma séria disputa entre dois gigantes com ideias diferentes, mas positivas. Líderes que tivessem histórias e feitos a contar e não discursos e declarações de fé a declarar.

Voltando à pergunta-título deste ensaio, vemos que a mistura Igreja-Estado no Brasil já está cobrando um preço alto de todos nós, com alguns juros e dividendos:

1. Esvaziando um discurso político sério sobre as prioridades nacionais. Trazendo à tona o aborto, que está equilibradamente resolvido nas várias legislações, tanto a nacional quanto a da maioria dos Estados.

2. Minando a ética pública, pois os desmandos e as politicagens continuam e as lideranças religiosas, por estarem recebendo favores dos governantes, acabam se omitindo e se calando.

3. Silenciando a contestação das questões de gestão, projeto de governo, gastos públicos; colocando no lugar temas como ser religioso, apoiar esta ou aquela fé.

Como todos os modismos e superficialismos, o modismo religioso vai dar em nada e em decepção. Sobre isso Rui Barbosa diz: “Não há falsidade imaginável, que, apoiada no dinheiro ou nas dependências privadas, não tenha, graças à barateza das testemunhas mercenárias ou às complacências particulares, meio fácil de triunfar, ou de dificultar as indagações judiciais, transviando ou embaraçando as decisões da justiça, sob a protetora capa do juramento religioso.”[3]

Permanece a máxima: “Pelos seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Toda árvore boa produz bons frutos, e toda árvore má dá frutos maus” (Mateus 7:16, 17).

(Silvio Motta Costa, professor da rede pública em Campinas, SP)

Notas:

1. Barbosa, Rui. Introdução ao livro O Papa e o Concílio de Janus, p. 276, 277. Editora Elos, Rio de Janeiro, 3ª edição.

2. Ibid., p. 15.

3. Ibid., p. 304, 305.

Nota: Há quem pense que sou anti-Dilma, outros imaginam que sou ou anti-Serra. Nada disso. Não tenho nada contra esses dois candidatos, pessoalmente. Tenho publicado aqui alguns textos mostrando os dois lados da discussão política pela qual passa nosso país. Para fazer contraponto ao texto de Júlio Severo, sugiro a leitura do artigo “Dilma e a fé cristã”, de Frei Betto. Repito: temos que votar de maneira consciente e esclarecida, não baseados em boataria que desvia o foco das reais necessidades de um Estado laico: saúde, educação e liberdade.[MB]