quarta-feira, dezembro 01, 2010

A respeito de crimes contra a natureza

Tenho um mantra: sem honestidade intelectual e senso de gratidão uma pessoa se tornará inepta para qualquer moral ou ética. Pela prática do debate e pela leitura regular de artigos, aprendi a reconhecer esse flagelo mesmo quando incrustado em gente insuspeita. A gratidão dispensa comentários, já a honestidade intelectual é algo complicado. O desonesto intelectual não pode ser definido como um trapaceiro, mas como alguém essencialmente parcial, seletivo em suas leituras, pré-condicionado quanto às conclusões e despreocupado com o rigor fatual. Geralmente é sincero e respeitoso para com o oponente. Porém, quando contraditado, costuma repetir beeeem devagarzinho a sua tese, como se o outro não concordasse por não tê-la compreendido.

Há quase dez anos acompanho a coluna semanal do filósofo Hélio Schwartsman na Folha.com. Não fosse deselegante, seria injusto vinculá-lo ao rótulo acima. Admiro sua argumentação e seu sutil humor judaico, além de apreciar-lhe a atenciosidade e reconhecer que ele busca, até onde percebo, verificar se existe verdade nas proposições com que não concorda. Nos comunicamos com certa regularidade, quase sempre divergimos por ele ser ateu e de esquerda (por esquerda, entendo a pretensão de se promover a igualdade entre indivíduos mediante concessões exageradas ou indevidas ao aparelho estatal - por contraste, defino-me como sendo de direita, pois prezo a liberdade, de preferência sem a tutela ou os arbítrios do Estado). Findo o preâmbulo, apresento a questão.

Em seu último artigo, no dia 25/11/2010, intitulado “Santos, mártires e heróis”, Hélio critica a disposição de se morrer por uma ideia, e mete na mesma cumbuca religiosos, ateus, idealistas, terroristas, gregos e goianos. A certa altura, para explicar o fenômeno, ele empaca ao ter que optar entre “uma adaptação humana obtida por seleção natural ou apenas um efeito colateral resultante da forma como nossos cérebros estão montados”. Ultrapassando a seleção natural no âmbito do indivíduo e até de seus genes (você sabe, essa dramaturgia disfarçada de biologia que tanto enche os bolsos de Richard Dawkins), envereda pela seleção natural na esfera do grupo.

Em uma das críticas que encaminhei ao Hélio, objetei que em vez de tentar explicar a realidade, o evolucionismo a interpreta a seu talante a fim de se justificar, o que resulta numa curiosa tautologia: o pau-de-arara do wishfull thinking darwiniano obriga a realidade a confessar “fatos” que endossem a evolução para que esta resulte como única forma possível, insuspeita e adequada de explicar a realidade, ganhando, assim, status de verdade absoluta.

Quando um filósofo se propõe a explicar a realidade através do expediente acima, é necessário lembrar, até por uma questão de prudência, que ele não é um pesquisador, seja esse biólogo, arqueólogo, paleontólogo, astrofísico ou especialista afim. Logo, tal filósofo dependerá sumamente de teorias, postulações e hipóteses sobre as quais não possui autoridade, antes procurará, quando muito, certificar-se da coerência dos trabalhos científicos nos quais se baseia para fazer suas próprias afirmações, bem como na credibilidade dos autores desses trabalhos. Por conseguinte, ele precisa confiar que é rocha e não areia o solo sobre o qual está construindo suas teses. É como saltar de um avião acreditando que o paraquedas vai abrir - ou pelo menos que não é uma mochila.

Voltando ao artigo, Schwartsman volta a especular se o ato do martírio não acionaria áreas cerebrais e mecanismos cognitivos similares aos de recompensa pela satisfação com as drogas. Conclui afirmando que “como ocorre com as drogas, o fenômeno é legítimo até o ponto em que nos proporciona prazer e preenche alguns vazios existenciais. Deixa de sê-lo quando passa a nos impor ônus despropositados. Se há um verdadeiro crime contra a natureza, ele não está em formas mais imaginativas de fazer sexo, mas em exigir que alguém dê a própria vida por uma ideia abstrata - e, em geral, carente de comprovação”.

Embora há muito acostumado com essas linhas de raciocínio, o texto me causou mal-estar. Mesmo que eu fosse um materialista dos mais convictos, jamais descartaria a possibilidade, talvez uma certeza, de ter sido beneficiado em tempos ancestrais pelo martírio de alguém que defendeu alguma ideia abstrata - independentemente de eu achar ridícula a ideia que provavelmente me facultou a existência. Ato contínuo, me veio à mente a história do frade franciscano polonês Maximiliano Kolbe.

Durante a Segunda Guerra, Kolbe abrigou o máximo de refugiados que pode, entre eles, mais de dois mil judeus. Em fevereiro de 1941, a Gestapo o prendeu e o despachou para Auschwitz, onde recebeu o número #16670. Cinco meses depois, em represália à fuga de um prisioneiro, os oficiais do campo resolveram sortear dez outros prisioneiros para a morte por inanição. Um dos sorteados, de nome Francisco Gajowniczek e número #5659, pôs-se a chorar em alta voz, lamentando pelo futuro de sua esposa e filhos. Nesse momento, #16670 se ofereceu em substituição a #5659, o que foi aceito. Semanas depois, só quatro entre os dez infelizes ainda estavam vivos, #16670 inclusive. Os nazistas então o executaram com uma injeção de ácido carbólico. #5659 sobreviveu a tudo e revelou a história ao mundo. Em 1982, #16670 foi canonizado durante cerimônia à qual estava presente #5659.

As Escrituras Sagradas execram e combatem sem tréguas a iniquidade, já que ela causa separação entre o homem e Deus. Por iniquidade, entenda-se a “banalização do mal” - em um sentido mais cotidiano e trivial que o empregado por Hannah Arendt. Não consigo imaginar mais rematado exemplo de banalização do mal que a ampla aceitação de um postulado filosófico a pregar que o sacrifício de Maximiliano Kolbe deva ser considerado “crime contra a natureza”, tendo por contrapartida - aceitável - alguma “forma mais imaginativa de fazer sexo”, quem sabe a cena de um indivíduo se fazendo sodomizar por um asno ou excretando diretamente na boca de seu parceiro sexual.

Como disse Alguém, “a sabedoria é justificada por seus filhos”.

(Marco Dourado, analista de sistemas formado pela UnB, com especialização em Administração em Banco de Dados; colaborador deste blog)