terça-feira, março 01, 2011

Carnavalizaram racismo e fé

No início do ano letivo de 2010, a prefeitura municipal de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, distribuiu para todas as escolas da sua rede municipal de ensino kits contendo, cada um, 107 livros infanto-juvenis: 84 de Monteiro Lobato, o célebre criador do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, e 23 de Ziraldo, ganhador do prêmio internacional Hans Christian Andersen, o “Nobel” da literatura infanto-juvenil. A ação foi muito festejada. Afinal, não é toda criança ou adolescente no país que tem acesso facilitado à obra completa de dois dos principais autores brasileiros do gênero. Hoje, um ano depois, o orgulho da administração municipal de Campo Grande com sua iniciativa está cada vez mais dando lugar a uma baita saia-justa. Primeiro, a obra de Monteiro Lobato foi colocada sob suspeição após a denúncia de que um livro do autor adotado nas escolas públicas brasileiras desde a década de 1990 contém elementos racistas. Agora, Ziraldo entrou na polêmica de forma no mínimo atabalhoada com um desenho em que ironiza as acusações de racismo dirigidas a Monteiro Lobato e com a explicação controversa que deu para a ilustração. [...]

O debate que se seguiu foi centrado em dois pontos: Monteiro Lobato poderia ser absolvido pelos preconceitos do seu tempo, ainda que seja considerado um homem à frente dele? E mais: a importância da sua obra poderia ser comprometida pela sua afeição à eugenia?

Pois quando o debate sobre racismo e censura pedagógica envolvendo o nome de Monteiro Lobato já ameaçava esfriar, Ziraldo apresentou, há poucos dias, o desenho que fez para estampar a camisa de um bloco carnavalesco carioca chamado “Que m* é essa?”. A ilustração mostra Monteiro Lobato, com suas inconfundíveis sobrancelhas, abraçado a uma mulata de curvas salientes.

O bloco, que por tradição aborda em cada carnaval um tema polêmico do cenário político brasileiro, decidiu neste ano criticar o que seus organizadores consideram uma tentativa de censura aos livros de Monteiro Lobato. Ziraldo abraçou a ideia, ilustrou a camisa do “Que m* é essa?” e saiu-se com essa: “Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma negrinha que é uma maravilha. Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com essa brincadeira de achar que a gente é racista.”

A reação não tardou. A escritora Ana Maria Gonçalves divulgou uma carta aberta intitulada “Lobato, Ziraldo e a carnavalização do racismo”, criticando ferrenhamente a ilustração criada para o bloco “Que m* é essa?” e na qual pinça diversos trechos das obras dos dois autores que provariam o racismo subjacente a ambas. Quanto ao trabalho de Ziraldo, Ana Maria ressalta especificamente a “docilidade” e a “resignação” com a condição de submisso que caracterizam as histórias do personagem Menino Marrom.
Certa vez, respondendo sobre de onde veio a inspiração para o Menino Marrom, Ziraldo disse: “Eu estava olhando no espelho e descobri que eu era marrom. Descobri que não existe gente preta, existe gente marrom. Foi assim que nasceu o Menino Marrom.”

(Opinião e Notícia)

Nota: Sem dúvida, essa polêmica ainda vai dar o que falar e pretendo (ainda) não meter minha colher nesse angu. Mas não posso deixar de manifestar estranheza pelo uso de dois pesos e duas medidas neste carnaval. As mesmas pessoas que ficaram indignadas com a ilustração em que aparecem Monteiro Lobato e uma mulata não se importam que o nome de Deus e de personagens bíblicos sejam mencionados em samba de enredo e associados à licenciosidade do carnaval (clique aqui para conferir). O racismo é, sim, problema sério e deve ser combatido. Mas o que dizer do desrespeito e da blasfêmia?[MB]