segunda-feira, abril 18, 2011

Obscuro apenas para o incrédulo

A tragédia de Realengo (uma catástrofe, se tivermos genuína empatia pelas vítimas e seus parentes) acionou novamente uma das leis de Mencken: para cada problema complexo haverá sempre alguma solução fácil – fácil, simples, plausível e errada. Refiro-me à questão do desarmamento, mas isso fica para outra ocasião. Trataremos por ora da identidade religiosa do autor do massacre. Uma mente insana como a do psicopata em tela possui lógica peculiar – imperscrutável a qualquer outra pessoa. Trechos da Bíblia Sagrada mais o fascínio pelo extremismo islâmico evidenciados pela investigação demonstraram confusão mental insolúvel, um verdadeiro nó górdio. Mesmo assim, isso serviu de gancho para que os oportunistas de sempre correlacionassem, ainda que obliquamente, loucura e religião – e por religião referiam-se, claro, ao Cristianismo. Um articulista, ao listar a pletora de razões possíveis para a demência do rapaz, não perdeu a viagem: “Tinha [o assassino] um lance esquisitíssimo com a religião (mesmo para os que consideram normal acreditar num Papai do Céu que dita livros obscuros dos quais espera que deduzamos o que Ele quer de nós).”

Nessa frase, chamaram-me a atenção três pontos: (1) Deus “dita” (sic); (2) “livros obscuros”; e (3) Deus espera que “deduzamos o que Ele quer de nós”.

O apóstolo Pedro rechaça a primeira e a terceira assertivas: “E temos ainda mais firme a palavra profética à qual bem fazeis em estar atentos, como a uma candeia que alumia em lugar escuro, até que o dia amanheça e a estrela da alva surja em vossos corações; sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação [3]. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade dos homens, mas os homens da parte de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo [1]” (2 Pedro 1:19-21).

Quanto à acusação de os livros das Sagradas Escrituras serem “obscuros”, entre suas tantas profecias, cabe analisar uma das mais conhecidas, talvez a mais espetacular:

Em 1656, ocorreu um incidente curioso na Polônia. Eruditos católicos e judeus contenderam a respeito da profecia das 70 semanas descritas no capítulo 9 do livro de Daniel. Encurralados pela argumentação dos oponentes e antes que esses lhes sapecassem um “quod erat demonstrandum” (ou seja, “como queríamos demonstrar”), os judeus se retiraram da discussão e promulgaram um pesado anátema contra qualquer filho de Israel que procurasse averiguar a cronologia do período profético: “Que os ossos e a memória do que tentar aferir as 70 semanas apodreçam” (The Midnight Cry, 10 de agosto de 1843).*

Mas o que fez com que os mestres judeus e os rabis venham sendo, durante séculos, proibidos de ensinar e interpretar essa profecia? Vejamos seu contexto e correlações históricas:

Já vice-governador do rei medo Dário, filho de Assuero, o então octogenário Daniel jejuou e pranteou rogando a Deus que reconduzisse os judeus à Terra Santa, pois já se aproximava o fim dos 70 anos de exílio profetizado por Jeremias no século anterior. Daniel sabia muito bem que as promessas divinas são condicionais à contrapartida humana, e uma vez que seus conterrâneos negligenciavam suas responsabilidades quanto ao arrependimento e reforma de vida, o profeta se humilhou em intercessão por seu povo. Nisso, o anjo Gabriel o visitou e deu-lhe a seguinte profecia, que Daniel escreveu no capítulo 9 de seu livro:

“Setenta semanas estão decretadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, e para expiar a iniquidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o Santíssimo. Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém até o Ungido, o Príncipe, haverá sete semanas, e sessenta e duas semanas; com praças e tranqueiras se reedificará, mas em tempos angustiosos. E depois de sessenta e duas semanas será cortado o Ungido, e nada lhe subsistirá; e o povo do príncipe que há de vir destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será com uma inundação; e até o fim haverá guerra; estão determinadas assolações. E Ele fará um pacto firme com muitos por uma semana; e na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oblação; e sobre a asa das abominações virá o assolador; e até a destruição determinada, a qual será derramada sobre o assolador.”

Algumas considerações:

1) É ponto pacífico no meio teológico que um dia profético equivale a um ano literal (ver Números 14:34, Ezequiel 4:6 e Levítico 25:8).

2) É fato histórico muito bem documentado que a ordem para restaurar e edificar Jerusalém foi dada por Artaxerxes no outono do ano 457 a.C. (ver Esdras 7:13-26). Dos três decretos encontrados em Esdras, os três incluem a ordem para formar um governo com a construção do templo. Jerusalém passaria a ser, mais uma vez, o centro espiritual e governamental para os judeus.

Vamos aplicar essas informações ao texto da profecia:

a) “Setenta semanas estão decretadas sobre o teu povo” – 70 semanas (ou “grupos de sete” – shebuah, no idioma hebraico) = 490 dias proféticos = 490 anos literais. Nesse período, Deus ainda consideraria a nação judaica como depositária exclusiva da revelação divina referente ao plano de salvação para toda a humanidade.

b) “desde a saída da ordem para restaurar Jerusalém” – 457 a.C. (expedição do decreto –ponto de partida da profecia).

c) “e para edificar Jerusalém... haverá sete semanas” – 7 semanas = 49 dias proféticos ou 49 anos literais, que, começando em 457 a.C., terminaram em 408 a.C., quando a cidade foi, de fato, reconstruída.

d) “e sessenta e duas semanas... até o ungido [Messias ou Cristo]” – A partir de 408 a.C., essas 62 semanas (ou 434 dias proféticos, isto é, 434 anos literais) terminaram no outono do ano 27 d.C. (lembrando que não existiu o ano 0), quando Jesus foi batizado no rio Jordão, ungido pelo Deus-Espírito Santo e aprovado por Deus-Pai, passando, assim, a ser, oficialmente, o Ungido, isto é, o Messias (Lucas 3:1 é extremamente detalhista para localizar esse evento no registro histórico: “No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe tetrarca da região da Itureia e de Traconites, e Lisânias tetrarca de Abilene”).

e) “fará um pacto firme com muitos por uma semana” – Entre os outonos de 27 e 34 d.C., deu-se a última e dramática semana profética, decisiva para o povo judeu. Nesse período, a boa-nova foi intensamente pregada e “muitos” judeus aceitaram o “pacto firme”. Após o linchamento de Estevão pela seita dos fariseus, esgotou-se em definitivo o tempo estipulado por Deus para a nação judaica – atenção! não para o indivíduo judeu (ver cartas do fariseu Saulo, ou Paulo).

f) “na metade da semana fará cessar o sacrifício” – Três anos e meio após Seu batismo, isto é, na primavera do ano 31 d.C. (15 de Nisã – ver artigo “O dia da morte de Jesus”), teve lugar a crucifixão vicária do Messias em cumprimento do acordo – ou testamento – firmado ainda no Éden (ver Gênesis 3:15), confirmado com Abraão (ver Gênesis 22:15-18 e João 8:56) e reafirmado ao longo da Torah, dos Salmos e dos profetas. Esse momento marcou o fim da necessidade do sacrifício diário de animais como antítipo do sacrifício do próprio Deus-Filho – no exato momento da morte de Jesus o véu que separava no templo o Santo do Santíssimo foi rasgado de cima para baixo por mãos inumanas (ver Mateus 27:51).

g) “o povo do príncipe que há de vir destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será com uma inundação; e até o fim haverá guerra; estão determinadas assolações” – Essa parte da profecia se cumpriu no ano 70 d.C., por intermédio do general Tito e suas tropas.

Como se pode apreender, nada há de “obscuro” nessa profecia. As demais profecias do livro de Daniel (capítulos 2, 7, 8, 9, 11 e 12) são extraordinariamente precisas quanto a datas e detalhadas quanto às personagens e eventos. Alexandre, Cassandro, Lisímaco, Seleuco, Ptolomeu, César, Otávio, Cleópatra, as tribos bárbaras, o papado, todos são facilmente identificáveis. O mais impressionante é a intertextualidade entre os livros de Daniel e Apocalipse: este expande e aprofunda aquele.

De toda essa história, resta trágico, por corriqueiro, o entenebrecimento das mentes pela incredulidade (e por incredulidade entenda-se recusa sistemática e incondicional ao argumento).

São tempos bicudos esses, sabemos – mas até isso já estava profetizado (ver Mateus 24 e 2 Pedro 3).

(Marco Dourado, analista de sistemas formado pela UnB, com especialização em Administração em Banco de Dados)

(*) Com relação a isso, o Pastor Jacques Doukhan, professor da Andrews University, no livro The Mystery of Israel and the Church, pagina 41, faz a seguinte observação: “Excursus: Uma maldição rabínica sobre Daniel. Nós precisamos retificar a concepção errada (e uma calúnia) sobre a tão falada maldição rabínica em relação ao estudo da profecia das 70 semanas. Alguns cristãos têm sugerido que rabinos proferiram uma maldição específica contra o judeu que ler o livro de Daniel, procurando, assim, desencorajá-lo a estudar suas profecias e prevenindo-o de concluir que Jesus é o Messias. De fato, a maldição simplesmente tenta prevenir os judeus contra especulações sobre o tempo do fim e da vinda do Messias, a fim de que não sejam desencorajados se o Messias não vier, e assim cair em descrédito. De modo a apreciar e entender a verdadeira intenção dessa maldição, o texto inteiro e exato da maldição segue então: ‘R. Sh’muel bar Nahmani disse em nome do R. Yohanan: ‘Possam os ossos daqueles que calculam o fim [messiânico] ser assoprados fora! Assim que o tempo [calculado por eles] chega e o Messias não vem, eles dizem: ‘Ele já não virá mais mesmo’. Portanto, esperem por ele, porque assim está dito, ainda que Ele demore, esperem por Ele (Hc 2:3).’ B. Sanhedrin 97b.”