A
revista Superinteressante, ao longo
dos anos e cada vez mais distante de sua proposta original, se tornou extremamente previsível e redundante. Tanto é
assim que, quase sempre nos meses de dezembro, os editores dela dão um jeito de
publicar alguma coisa sobre Jesus, desde que seja algo sensacionalista e contrário
ao que dizem os Evangelhos. O título da matéria de capa deste mês é
autoexplicativo e típico: “Jesus, a verdade por trás do mito”. É a mesma ideia
de sempre: o relato evangélico sobre Jesus é mitológico, mas a Superinteressante, com base em duas ou
três fontes (sempre liberais ou simplesmente descrentes), tem a verdade. É a
Superdona da verdade.
Segundo
a reportagem, “é consenso entre os historiadores de que Jesus nasceu mesmo em
Nazaré”. Então citam John Dominic Crossan,
para quem “tanto Mateus quanto Lucas dizem que Jesus nasceu em Belém com o
objetivo de dizer metaforicamente, simbolicamente, que ele é o ‘novo rei
Davi’”.
E
a revista prossegue em sua tentativa de desconstrução da história: “O motivo
que Lucas dá para José e Maria terem ido a Belém não existiu. O governo de
Augusto é extremamente bem documentado. E não há registro de censo nenhum.
Menos ainda um em que as pessoas teriam que ‘voltar à cidade de seus
ancestrais’.” “Isso
não é verdade", afirma o teólogo e doutorando em arqueologia pela USP, Rodrigo Silva. "Os especialistas sabem comumente que a Biblioteca Nacional de
Londres guarda vários desses censos romanos que ocorriam em ciclos de 14 em 14
anos. Alguns deles, como, por exemplo, o Papiro Oxyrynchus 225, datado do tempo de
Tibério, mencionam a necessidade de cada cidadão voltar à sua aldeia natal
durante o processo do recenseamento."
Mas o fato é que, quando o assunto é a pessoa
de Jesus Cristo, mesmo entre os incrédulos a resposta não é clara. “Existem
aqueles que defendem a ideia do Jesus mito, dizendo que ele não foi nada além
do que um plágio de divindades egípcias, gregas, romanas e do hinduísmo”, explica o pastor e
teólogo Luiz Gustavo Assis, de Porto Alegre, RS. Alguns ateus militantes são
taxativos em dizer que Jesus jamais existiu, e quase num malabarismo lógico (ou
ilógico) tentam descartar as mais de dez referências extrabíblicas que O
mencionam. Mais recentemente, o agnóstico Bart Ehrman lançou o livro Did
Jesus Exist? The Historical Argument for Jesus of Nazareth (HarperOne,
2012), no qual ele curiosamente defende a historicidade do carpinteiro de
Nazaré! “Afinal, quem está com a razão?”, pergunta Luiz.
Entre
uma e outra crítica, existem uns poucos fatos bem conhecidos na matéria da Super. Por exemplo: “Outro consenso é o
de que Jesus nasceu ‘antes de Cristo’. A fonte aí é a própria Bíblia [note
como, de repente, numa crise de “bipolaridade jornalística”, a Bíblia passa a
ser aceita como fonte histórica]. Mateus e Lucas dizem que Ele veio ao mundo
durante o reinado de Herodes, o Grande (não confundir com Herodes Antipas, seu
filho, o soberano da Galileia durante a fase adulta de Jesus). Bom, como esse
reinado terminou em 4 a.C., Ele não pode ter nascido depois disso. E sobre o
dia do nascimento a Bíblia é clara: não diz nada.” Curiosamente, Superinteressante escolhe os textos
bíblicos que devem ser claros e confiáveis e descarta os que não quer que sejam confiáveis. Tanto é
que, quando trata dos “reis magos”, sentencia: “Essa é uma história típica da
mitologia em torno de Jesus.”
No
quarto tópico tratado pela matéria sob o intertítulo “Jesus era só um entre
vários profetas”, há a sugestão de que Jesus Cristo teria sido apenas um
profeta. O especialista consultado é Chevitarese, para quem João Batista seria um “concorrente” de Cristo: “Ele não se
ajoelharia na frente de Jesus e diria que não é digno de amarrar a sandália
dele, como está nos evangelhos”, diz Chevitarese. E mais uma vez ficamos
confusos: Superinteressante aceita ou
não o relato dos Evangelhos?
Mais:
não é possível aceitar que Jesus fosse apenas um profeta. Nenhum profeta
bíblico jamais assumiu prerrogativas divinas como a de perdoar pecados e se
dizer Deus. Conforme lembra Luiz Gustavo, no Antigo Testamento, o verbo hebraico salah
(perdoar) só ocorre tendo Deus como sujeito. “Quando Jesus utilizou esse verbo,
estava deixando bem explícito como Ele via a Si mesmo”, diz o teólogo. Jesus
fez isso mais de uma vez, tanto é que quase foi apedrejado por blasfêmia. Fosse
apenas humano e teria sido mesmo uma blasfêmia. Fosse apenas humano e não teria
aceitado a declaração de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus.” Se Jesus fosse apenas
humano, jamais teria sido aceito como profeta, apenas. Ou seria um lunático ou
um impostor. Não profeta.
O
tópico 5 vai mais longe ao afirmar que Mateus, Marcos, Lucas e João não são os
autores dos evangelhos. “Ninguém sabe quem escreveu os livros”, afirma a
revista. Falso. Os chamados pais da igreja, ou seja, a geração seguinte de
líderes que sucedeu os apóstolos, citaram vários textos dos Evangelhos, e os atribuem unânime e inegavelmente aos mesmos
autores que temos hoje, a saber, Mateus, Marcos, Lucas e João. "Nenhum autor
antigo nega qualquer dessas autorias ou apresenta autorias alternativas para os
evangelhos", diz Rodrigo.
Outra
“verdade” da Super: “O mais provável
é que comunidades cristãs tenham encomendado esses trabalhos [os Evangelhos] –
e ditado aos escribas as histórias que conhecemos hoje.” Por quê? Porque,
segundo a revista, os discípulos seriam analfabetos. Contraditoriamente, a
mesma matéria informa que Mateus era cobrador de impostos e que Lucas era
médico. Seriam mesmo analfabetos? De
acordo com o especialista em Novo Testamento Ben Whiterington III, do Asbury
Theological Seminary, nos EUA, a palavra grega agrammatos, utilizada em
Atos 4:13 referindo-se aos discípulos de Cristo, tem o significado de não ser
treinado nas leis rabínicas e não significa ausência de instrução. (Certa ocasião, a revista Galileu
também afirmou que Jesus seria iletrado, esquecendo-se completamente da cena em
que Ele escreve no piso do templo.)
“Dos evangelhos, o primeiro a ser escrito foi
aquele que hoje [não apenas hoje, mas
desde sempre] é atribuído a Marcos, quase 40 anos após a morte de Jesus”,
afirma a matéria, se esquecendo de que uma fonte tão recente assim em relação
aos fatos ocorridos seria facilmente refutada pelas testemunhas oculares ainda
vivas na época. Segundo Luiz Gustavo, atualmente existe acalorada discussão
envolvendo um fragmento descoberto entre os Manuscritos do Mar Morto, na
Jordânia, e o Evangelho de Marcos. Trata-se do documento 7Q5, que muito
provavelmente seja o manuscrito mais antigo desse evangelho, de acordo com o
falecido papirologista espanhol e teólogo Josep O’Callaghan. “É bom lembrar que
a comunidade de Qumran foi destruída antes do ano 70 d.C., e na biblioteca deles
já havia um exemplar do Evangelho de Marcos. Sem dúvida, ele deve ter sido
escrito antes dessa data”, conclui Luiz. Os textos de Paulo são ainda mais
próximos do tempo de Jesus. Um exemplo disso é 1 Coríntios 15:3-7. Trata-se de
um antigo credo cristão que Paulo estava citando para os fiéis de Corinto.
Existem várias palavras e expressões nesses versos que jamais foram utilizadas
por ele em outras passagens, demonstrando que ele estava citando algo. Não só
isso, mas os verbos “entregar” e “receber” eram termos técnicos utilizados no
meio rabínico para transmitir tradições orais.
As fortes tendências semíticas nesses textos
demonstram que esse credo surgiu na região de Jerusalém e Paulo deve ter tido
contato com ele em algum momento depois de sua conversão, em 34 d.C., poucos
anos após os ministério de Jesus, que se encerrou em 31 d.C. “Em outras
palavras”, explica Luiz, “o que temos em 1 Coríntios 15:3-7 é um credo cristão
falando da morte, sepultamento, ressurreição e das aparições de Jesus,
elaborado pouco tempo depois desses eventos, e que facilmente poderia ser
desmentido.”
Na
contramão da Super, a jornalista Isabela
Boscov, na revista Veja do dia 15 de
dezembro de 2004, escreveu: “As fontes mais aceitas sobre a trajetória de Jesus
– os evangelhos sinópticos, de Mateus, Lucas e Marcos – são consistentes com o
que se sabe sobre a Palestina do século I, de forma que a chance de serem fruto
da imaginação de seus autores é desprezível.”
Sir William Ramsey, célebre historiador do século 19, esforçou-se
por demonstrar que o relato de Lucas estaria cheia de erros. Entretanto, após um longo período de sistemáticos estudos ele
reconsiderou sua posição dizendo: “A história de Lucas é
insuperável quanto a sua fidedignidade” (The
Bearing of Recent Discoveries on the Trustworthiness of the New Testament [Grand
Rapids: Baker], p. 81). Mas a Superdona da verdade consulta esse tipo de fonte?
Não, nunca.
A
revista não ia perder a chance de colocar o dedo na polêmica em torno da suposta esposa de Jesus: ao falar a respeito dos “evangelhos
apócrifos”, informa que “um deles é aquele descoberto recentemente e que ficou
famoso por dizer que Jesus era casado”. Trata-se de um fragmento de papiro em que se lê:
“Minha esposa [...].” O resto está cortado. “O manuscrito é dos anos 300 d.C.
Bem mais recente que os evangelhos do Novo Testamento”, portanto, muito menos confiável que os manuscritos bíblicos. Mas o pior vem a seguir: “O que ele [o fragmento egípcio com
texto incompleto e cortado] significa? Que alguma comunidade cristã daquela época
acreditava que Jesus era casado.” Isso é interpretação mirabolante de quem não
estuda a Bíblia. Ainda que acreditássemos na autenticidade do papiro, o
fragmento de frase “Minha esposa [...]” poderia significar muitas coisas,
inclusive uma menção à igreja, representada no Apocalipse (e em outros livros
bíblicos) como a “esposa do Cordeiro”.
Além
de também tentar redimir o traidor Judas (tópico 6) (leia sobre isso aqui,
aqui
e aqui),
no tópico 7, a revista vai mais longe: procura reinterpretar as palavras de
Jesus (registradas nos evangelhos que ela não aceita, relembre-se). “O reino de
Deus ou Reino dos Céus) que Jesus pregava iria acontecer aqui na Terra mesmo
[...] Jesus chega a afirmar que o Reino de Deus já chegou”, diz o texto, numa
clara tentativa de sugerir que Jesus não Se refere ao fim do mundo. Que falta
faz a boa teologia! Superinteressante
deveria fazer o dever de casa e perguntar a alguns bons teólogos por que Jesus Se
referia ao reino de Deus no futuro e no presente. Algum desses estudiosos poderia
explicar que Jesus faz menção ao reino da graça (presente) e ao reino da glória
(futuro). Como Rei dos reis, onde Jesus está, ali está o reino dos Céus.
Portanto, o reino já estava de fato entre as pessoas do século 1, e também pode
estar com qualquer um que convide Jesus para morar em seu coração, em sua vida.
Mas o aspecto glorioso desse reino de fato está no futuro, quando Jesus voltar à Terra para resgatar aqueles que aceitaram o reino da graça.
Simples assim. Não tem nada de oportunismo, como Superinteressante sugere, como se Jesus, ao ver que Sua pregação
apocalíptica não se cumpria, teria se saído com esta: “Meu reino não é deste
mundo.”
O viés da matéria da Superdona da verdade
fica ainda mais claro no fim do texto, no “Para saber mais”. São indicados
apenas dois livros, de autores que defendem a mesma linha de pensamento: André
Chevitarese e Bart Ehrman. Existem vários acadêmicos de respeito que poderiam ser citados como
contraponto. O teólogo e filósofo Gary Habermas, da Liberty University, nos EUA (leia
entrevista exclusiva com ele na revista Conexão 2.0 de
janeiro), e Craig Evans, da Acadia Divinity College, no Canadá. Ambos possuem vários livros
publicados sobre Jesus e o surgimento do cristianismo, mas são sempre ignorados
em matérias como essa da Super.
Se
não consegue sequer fazer bom jornalismo “ouvindo os dois lados”, como Superinteressante vai nos fazer crer que
é capaz de falar de Jesus com isenção? Bem, o importante é vender revistas e
Jesus é um bom “vendedor”. Isso é fato e a Super
sabe muito bem.
(Michelson Borges é
jornalista e mestre em teologia)