quinta-feira, setembro 19, 2013

Ateísmo “paz e amor” e o enfraquecimento da apologética

Fim dos confrontos ou das discussões?
Um dos biólogos mais brilhantes e influentes da atualidade trocou a ciência pelas discussões religiosas. A maior parte de seu tempo é dedicada a escrever e a falar sobre Deus. Seria apenas mais um caso de fanatismo religioso, não fosse um fato: Richard Daw­kins não tem religião. Britânico de 72 anos, autor de Deus, um Delírio, ele é um dos mais célebres militantes do ateís­mo. Seu estilo aguerrido e suas críticas impiedosas a diversas religiões, ocidentais e orientais, deram visibilidade aos ateus nos últimos anos – e renderam um sem-número de críticas a sua intolerância [e ele pode ter motivos psicológicos para isso]. Em agosto, uma frase sua sobre a pequena quantidade de muçulmanos vencedores do Prêmio Nobel despertou indignação nos jornais e nas redes sociais. Em resposta, o escritor Reza Aslan, muçulmano, afirmou que Dawkins era “o pior tipo de fanático”. “Ele diz que nunca leu o Alcorão, mas tem certeza de que o islã é a maior força do mal no mundo.”

A postura agressiva e muitas vezes preconceituosa de Dawkins e de seus asseclas, como o neurocientista americano Sam Harris ou o filósofo americano Daniel Dennett, começa aos poucos a ceder espaço a um ateísmo de postura mais tolerante. O filósofo britânico A. C. Grayling é um representante dessa transição. Grayling está longe de ser um fã da religião. “O mundo seria bem melhor se não acreditássemos em conto de fadas”, disse ele a Época. “A religião é simplesmente inconsistente com a modernidade.” Mas suas obras são bem menos cáusticas que as de Daw­kins.

Em março, Grayling lançou The God Argument (O argumento divino, em tradução livre). O livro apresenta argumentos filosóficos contra a existência de Deus. Trata-se basicamente de um manifesto humanista. Mesmo acreditando que a religião é prejudicial à humanidade, Grayling não gasta muita energia em debates com religiosos. Em 2011, ele publicou The Good Book (O livro bom), uma espécie de guia de vida para ateus. Em 608 páginas, apresenta citações e conceitos de grandes pensadores, como Aristóteles, Confúcio, Cícero, Isaac Newton e Charles Darwin, em capítulos e versículos. Não bastasse isso, Grayling imita a estrutura bíblica. O primeiro capítulo, sobre a origem do Universo de acordo com a ciência, é o Gênesis – então seguido de Lamentações e Provérbios, e assim por diante. Em vez de apenas criticar as religiões, os livros de Grayling tentam construir alternativas a elas.

Um passo além de Grayling estão os ateus que desejam dialogar com religiosos. Um defensor da ideia é o americano Chris Stedman. Autor de blogs de religião no jornal Washington Post, no site da emissora CNN e no site Huffington Post, ele lançou em novembro do ano passado o livro Faitheist (trocadilho com as palavras “ateu” e “fé”, em inglês). Organizador da comunidade de ateus e agnósticos da Universidade Harvard, Stedman afirma que a diversidade de opiniões deve ser celebrada. “As pes­soas fazem coisas boas ou ruins com ou sem religião”, afirma. Para ele, os ateus devem se organizar em comunidades para debater em pé de igualdade o privilégio religioso em sociedades como a americana. Mas sem incitar qualquer tipo de rixa. “Uma verdadeira sociedade secular precisa de pluralismo”, afirma.

Para Stedman, os ateus e religiosos devem se engajar em diálogos construtivos e pacientes. “É preciso identificar valores em comum, porque a religião dificilmente sairá do mapa. A cooperação é extremamente necessária num mundo em que as vozes extremistas costumam afogar as outras”, diz. Stedman fala com conhecimento de causa. Em suas próprias palavras, ele era um “católico fundamentalista” antes de virar ateu.


O filósofo suíço Alain de Botton é ainda mais conciliador que Stedman. “Tenho um respeito profundo pela religião, apesar de não acreditar em seus aspectos sobrenaturais”, disse Botton a Época. “As grandes religiões são enormes máquinas capazes de transmitir ideias sobre a bondade, a morte, a família e a comunidade. Não há nada parecido com isso no mundo laico, e isso é uma pena.” Em seu livro Religião Para Ateus (editora Intrínseca), Botton se propõe a “roubar” das religiões ideias sobre como viver. Uma de suas sugestões mais polêmicas é a construção de um templo para ateus, no centro de Londres. Dawkins, é claro, detestou a ideia. “Ateus não precisam de templos para buscar o sentido da vida”, disse ele ao jornal britânico The Guardian. Botton, em resposta, afirmou que a ideia era uma reação a Dawkins. “Por causa de Richard Dawkins, o ateísmo tornou-se conhecido como uma força destrutiva”, diz. “Escrevo para pessoas que não acreditam em Deus, mas, mesmo assim, reconhecem o lado positivo da religião: os rituais, a arquitetura, a música e a conexão com o passado.”

Nem todos os ateus aderiram à postura mais tolerante defendida por Botton e Stedman. Um exemplo é a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea). Ela tem 10 mil membros e arrecada R$ 2 mil por mês [o “dízimo” ateu]. Apesar dos números modestos, ganhou destaque ao organizar a primeira campanha publicitária ateísta do país em Porto Alegre. Em julho, voltou às manchetes graças a um protesto contra os gastos públicos relacionados à chegada do papa Francisco ao Brasil [protesto que juntou uns poucos “gatos pingados”]. “É preciso ser enérgico. Quem não é engajado ignora os males causados pela religião, como a ascensão da bancada evangélica no Brasil”, diz Daniel Sottomaior, um dos fundadores da Atea. “Até porque criar ativismo para depois ficar sentado não faz muito sentido.” [É a guerra dos extremos: dos ateus fundamentalistas contra os evangélicos políticos pretensamente fundamentalistas.]

Nesse debate, uma das vozes mais sensatas é de Peter Steinberger, professor de ciência política do Reed College, em Portland, nos Estados Unidos. Steinberger lançou em julho o livro The Problem With God: Why atheists, true believers, and even agnostics must all be wrong (O problema com Deus: por que ateus, crentes e até agnósticos devem todos estar errados). O livro defende uma tese antiga, mas esquecida no meio do debate religioso iniciado por Dawkins: qualquer discussão relacionada à existência divina é uma perda de tempo. “As religiões são incoerentes, mas Dawkins também é incoerente por não ter uma prova definitiva da inexistência de Deus”, diz. “Os novos ateus acham que a ciência atual é suficiente para explicar o mundo, mas isso não é possível.”


Se as discussões entre religiosos e ateus se esvaziarem por falta de provas, como Steinberger sugere, os ateus moderados estarão um passo à frente dos militantes: terão sido os primeiros a abandonar um confronto inútil e a buscar maneiras de coexistir com os religiosos. “Ser ateu é como não colecionar selos”, diz Grayling. “É possível ser um ‘não colecionador de selos’ militante? Basta não colecionar selos.” 


Nota: Parece que alguns ateus estão se cansando da cantilena ácida e sem sentido dos ateus fundamentalistas capitaneados por Dawkins. Essa tendência pode ter um efeito positivo e um negativo (pelo menos): o lado bom é a promoção de um diálogo amistoso em busca de evidências (mas tudo pode ficar apenas no blábláblá mesmo, já que o zeitgeist do momento é o relativismo pós-moderno), e o lado ruim é que esse recuo da militância ateia pode ajudar a afrouxar as defesas argumentativas dos cristãos, já bastante fragilizadas pelo secularismo e pela teologia liberal. Sem ateus aguerridos para enfrentar, a apologética cristã poderá se tornar uma voz suave ecoando em ouvidos moucos. Poderemos chegar àquela situação clássica e pouco producente: “Você é feliz com sua crença? Que bom. Sou feliz não crendo.” E papo encerrado. [MB]