quinta-feira, outubro 31, 2013

A metralhadora giratória de Prates

Generalizações e preconceito religioso 
O gaúcho Luiz Carlos Prates é um conhecido comentarista de TV em Santa Catarina. Quando morava lá, de vez em quando eu o via no jornal da RBS (afiliada da rede Globo) “cuspindo fogo” em algo ou alguém. Esse é o estilo dele. Fala quase sempre de modo exaltado e com tons irados. Em 2010, ele conseguiu seus 15 minutos de fama nacional com um comentário pra lá de infeliz: disse que “hoje qualquer miserável tem um carro”, e atribuiu a isso o alto índice de acidentes de trânsito no País. Há quem diga que sua saída da RBS tenha sido motivada pelas muitas reclamações com respeito a seus comentários polêmicos, como outro, de 2009, em que ele teria supostamente defendido a ditadura militar, afirmando que o regime teria sido mais brando do que se noticia, e que o país nunca cresceu tanto quanto nessa época, especialmente sob o comando do falecido ex-presidente João Figueiredo. Recentemente, em sua coluna no portal Clica Tribuna (da minha cidade natal, Criciúma), ele publicou outra pérola de preconceito e generalizações. Acompanhe:

“Estou até aqui de ouvir sobre ‘religiosos’ corruptos, pedófilos, ordinários, safados e sem-vergonha. Até aqui... Acabei de ler sobre um professor que foi demitido de um colégio católico em Porto Alegre porque se negava a tratar de questões religiosas em sala de aula. O professor cuidava de lecionar, e bem, a matéria que lhe cabia; proselitismo religioso e ‘propaganda’ da cultura religiosa do colégio não era com ele. Foi demitido, ele tinha que tratar de mensagens religiosas, isto é, de condicionamentos terroríficos como costumam ser as doutrinas religiosas. E sobre isso sei muito bem, como ‘vítima’...

“Essa notícia me faz, mais uma vez, voltar ao meu ponto de vista, do qual não me afasto uma única vírgula: a melhor religião, a única a meu juízo, é a decência, a honestidade. E essa ‘religião’ tem que ser ensinada em casa pelo pai e pela mãe, por ninguém mais. Uma criança educada para ser decente, honesta, será boa, será confiável, será amiga leal, funcionária dedicada, boa cidadã, terá, enfim, cadeira no ‘céu’. Ando até aqui de sepulcros caiados, religiosos da boca para fora, mas ordinários da cabeça aos sapatos. Religiosos que se desmentem pelas ações, pelas intenções que lhes escapam no comportamento. Que vão mentir nos quintos...

“O que as religiões precisam fazer é dizer que a mulher é a geradora da vida, a verdadeira Natureza na natureza; precisam dizer que a mulher não é o resultado de uma costela, que não precisa nem deve ser submissa a um marido-chefe, a um mandão impotente. É isso o que ‘todas’ as religiões têm que pregar; se o fizerem, pronto, estará resolvido o problema da submissão da mulher. Sem essa de que a mulher é a malícia e a origem do pecado. Digam isso na minha delegacia e depois chamem o dentista... Safados.

“Dignidade, decência e honestidade bastam. Quem for educado por esses valores, insisto, tem cadeira garantida no ‘céu’, o mais é firula de condicionamentos indevidos para fazer de pessoas ‘rebanhos’ e ‘contribuintes’ de dinheiro de fins escusos...”

Nota: Sempre deixei pra lá esse comentarista, porque não concordo com seu estilo espalhafatoso bem de molde a agradar as massas que acabam se sentindo “vindicadas” pelo homem bravo da televisão, e porque poucas vezes concordei com suas opiniões extremadas e superficiais – embora defenda o direito que ele tem de emiti-las. Mas não posso deixar de comentar o que ele escreveu acima, nesse texto eivado de preconceito, generalizações e tergiversações. E faço isso em partes:

1. Também estou “até aqui” de jornalistas, apresentadores, comentaristas que se valem de sua tribuna midiática para destilar ódio, preconceito e generalizações. Como Prates, também detesto religiosos que jogam o nome de Jesus na latrina; que se valem de seu posto e de suas vantagens para enriquecer de forma ilícita ou obter diabolicamente a satisfação de seus desejos doentios. Mas isso não me faz tapar os olhos para os muitos religiosos que doam a vida a uma causa nobre; que se deixam gastar em amor ao semelhante; que não ficam apenas falando, mas que fazem algo de relevante pelos menos favorecidos. Não deixo de discernir entre o joio e o trigo e procuro não julgar o todo pela pior parte. Era de se esperar de um jornalista visão mais ampla das coisas e das pessoas; que não pensasse com o fígado e sim com o cérebro. Que fosse mais analítico e menos apaixonado.

2. Qualquer um sabe (ou deveria saber) que escolas confessionais defendem e ensinam as doutrinas e a filosofia da instituição que as mantêm. É assim com as escolas evangélicas e é assim também com as católicas. E quem aceita trabalhar numa delas (ou se matricular numa delas) deve saber que a lei permite esse tipo de coisas e que se espera do funcionário um mínimo de identificação ou, pelo menos, aquiescência com os ideais da instituição. Não sei exatamente o que aconteceu naquela escola católica de Porto Alegre, mas sei que a imprensa costuma exagerar quanto o assunto é religião; que os fatos costumam ser distorcidos e que o Prates pode ter ampliado a questão para servir de gancho para seu comentário. E, se for um fato isolado, pior ainda.

3. Doutrinas religiosas não são, necessariamente, “condicionamentos terroríficos”, especialmente se se tratam de doutrinas bíblicas, pois têm como âmago a redenção em Cristo e não a escravidão. Doutrinas bíblicas corretamente compreendidas têm, na verdade, libertado milhões e milhões de pessoas escravizadas pelos vícios, pelo pecado e pela falta de esperança. Mas Prates deixa escapar o motivo (talvez inconsciente) de sua ira virulenta: “Sobre isso sei muito bem, como ‘vítima’.” Prates, por favor, trate primeiro desse seu trauma (e não questiono a legitimidade de sua revolta, pois desconheço o que a motivou e motiva) antes de avacalhar com religiosos que nada lhe fizeram de mal. Se você foi vítima de algum sistema religioso ou de algum falso cristão, não apedreje quem nada tem que ver com isso.

4. “Essa notícia me faz, mais uma vez, voltar ao meu ponto de vista, do qual não me afasto uma única vírgula.” Isso é intransigência imprópria para um homem da comunicação, que deveria ter a mente aberta e estar disposto a mudar de ideia, quando necessário ou quando os fatos assim o determinarem. Ao ler a notícia, Prates volta ao seu ponto de vista inamovível em lugar de se permitir ver a situação com outros olhares. Julga e sentencia por meio de sua visão apriorística, em lugar de analisar o fato isolado, dentro de seu contexto.

5. Decência e honestidade não são religião, embora possam (e devam) derivar dela. Decência e honestidade são qualidades que devem ser ensinadas no lar e reforçadas pela escola e (quem dera) pela mídia. Prates não é totalmente honesto em sua análise (posto que coloca todos os religiosos no mesmo “saco”), mas prega a honestidade como religião. Será que a educação para a decência e a honestidade é suficiente? Tenho lá minhas dúvidas... Por quê? Porque conheço um pouco da natureza humana (afinal, conheço-me um pouco) e sei que nossa inclinação natural é para o mal e não para o bem, a despeito de quão polidos tenhamos sido pela boa educação. Posso trazer à memória vários nomes de ditadores, déspotas, tiranos que tiveram boa educação no lar e na escola e, no entanto, fizeram o que fizeram. Decência e honestidade ajudam? Claro que sim, mas sei que não são suficientes. A atração do pecado é muito maior do que a força de vontade e precisa de uma força opositora muito maior. E essa força não está em nós.

6. Jesus também “andava até aqui” com os sepulcros caiados do tempo em que Ele andou na Terra – aliás, foi Ele quem cunhou essa expressão. E foi Ele quem fundou uma religião que visava, entre outras coisas, tornar as pessoas íntegras, amorosas, perdoadoras, convertidas. Pessoas que fossem por fora o que são por dentro. Mas Prates, infelizmente, parece desconhecer esse tipo de pessoas – ou prefere não mencioná-las para não estragar sua crônica.

7. Prates não entendeu nada de sua leitura do Gênesis. Deus criou a mulher a partir da costela de Adão justamente para evidenciar a igualdade dela com ele. O osso usado não foi da cabeça (superioridade) nem do calcanhar (inferioridade), foi retirado do lado do homem (igualdade, companheirismo, mesma essência). E, de fato, nenhuma mulher deveria ser submissa a um marido-chefe, mas respeitar e amar um marido que fosse a verdadeira imitação de Cristo, assim como os cristãos convertidos se “submetem” por amor ao senhorio de um Deus que morreu por eles. O homem que amar uma mulher a ponto de dar a vida por ela e viver por ela terá conquistado o respeito dela e ambos exercitarão a mútua submissão motivados pelo amor. Prates deveria estudar a Bíblia em lugar de ficar julgando a religião pelo comportamento inapropriado de alguns cristãos mal intencionados, machistas e não convertidos. Para não cometer o mesmo erro dele, não vou dizer por aí que comentaristas de TV são todos preconceituosos, injustos e generalistas.

8. “Sem essa de que a mulher é a malícia e a origem do pecado. Digam isso na minha delegacia e depois chamem o dentista... Safados.” Quem diz que a mulher é a origem do pecado não sabe o que diz. A origem do pecado está com um anjo que se rebelou contra Deus (mas Prates também deve achar que isso é um mito e aí fica sem uma explicação apropriada para a origem do mal). Na verdade, quem mais associa mulher à malícia são justamente as emissoras para as quais Prates já trabalhou e trabalha (hoje ele está no SBT). São as emissoras que levam ao ar humorísticos maliciosos que transformam a mulher em objeto de exposição com roupas sumárias, tudo para alavancar a audiência. São as emissoras que veiculam comerciais que comparam mulheres a automóveis e a bebidas alcoólicas, coisificando-as e as transformando em algo que deve ser consumido, usado. Mas por que Prates não vocifera contra isso? Por que ele não pode falar contra a “doutrina” (linha editorial) de sua empresa? Talvez pelo fato de que o salário dele vem, também, dos milhões injetados na conta de seus empregadores pelos anunciantes.

9. Finalmente, no último parágrafo de seu texto, Prates parte para o lugar comum segundo o qual religião é sinônimo de roubalheira. Outra generalização infeliz que iguala os televangelistas da teologia da prosperidade (que, aliás, também dão muito lucro para emissoras seculares) com religiosos sérios que administram sábia e responsavelmente os recursos a eles confiados, haja vista as muitas obras de caridade levadas avante com esses recursos e os grandes esforços para levar a mensagem de esperança a todos os cantos do mundo. E tudo isso é feito com muito sacrifício por pessoas desprendidas, enquanto outros pensam que estão dando grande contribuição à sociedade apontando suas metralhadoras giratórias carregadas de palavras de ódio (“safados”, “chamem o dentista”, “vão mentir aos quintos”), sentados em suas bancadas e garantindo o salário no fim do mês.