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Olavo de Carvalho |
A
história das origens da modernidade está entremeada de mitos e lendas que os
historiadores já demoliram faz tempo, mas que constituem ainda a substância do
que se transmite a respeito nas escolas, na mídia e no show business. Tão forte é a impregnação dessas balelas na mente
popular – incluída aí a classe dos cientistas profissionais sem especial
cultura histórica –, que a simples iniciativa de informar ao público o estado
atual das pesquisas historiográficas sobre aquele período é recebida com
ataques apopléticos e ainda acusada de ser uma tentativa maligna de “desmoralizar
a ciência” em nome de algum “fundamentalismo religioso”. Que
essas reações sejam elas mesmas fundamentalistas no mais alto grau, é algo cuja
evidência salta aos olhos e não necessita de nenhuma prova suplementar. A fé na
“ciência” como fonte de toda autoridade é um dogma inabalável até mesmo entre
os que se impregnaram de desconstrucionismo na universidade e teriam todas as
razões para abandoná-la por completo.
É
que aí não se trata da ciência no sentido efetivo, seja do método experimental,
seja, mais genericamente, da busca sistemática do conhecimento, e sim de um
símbolo aglutinador destinado a infundir um senso de identidade e autoconfiança
nos grupos sociais empenhados em espalhar a ideologia do anticristianismo
militante.
Desses
grupos não se pode esperar nem um mínimo de racionalidade, mas sim o uso
descarado de rotulagens pejorativas e, em casos extremos, o apelo à intervenção
da autoridade policial.
Um
daqueles mitos é que o advento da ciência moderna substituiu, ao puro
raciocínio silogístico, o método indutivo. Joseph de Maistre demonstrou a
completa absurdidade dessa alegação no seu Exame da Filosofia de Bacon, obra
póstuma publicada em 1836, mas ninguém lhe prestou muita atenção, porque de
Maistre, um esquisitão de marca, tinha a especial capacidade de desagradar aos
maçons e progressistas por ser católico e aos católicos por ser maçom.
David
Hume, sem tocar na questão histórica, já havia feito picadinho das pretensões
da indução, mas, como não colocava nada no lugar dela, foi recebido com
desconversas piedosas da parte daqueles que, sem ela, se sentiam nus e
desamparados. Foi só no século 20 que, juntas, a confiança na indução e o
empenho de fazer dela a marca distintiva da ciência moderna foram sepultados de
vez no melhor livro de Sir Karl Popper, A
Lógica da Pesquisa Científica (1934), onde ele demonstrou que a indução
nada vale sem um raciocínio silogístico prévio que a sustente, que portanto o
método da ciência era ainda, no fundo, o bom e velho silogismo analítico de
Aristóteles.
Mas,
popularmente, o mito continua vivo e passa bem, e não só se mostra duro de
matar como alimenta e reforça, por contágio, a subsistência de outros tantos
mitos irmãos e congêneres, que às vezes saltam as fronteiras da cultura de
massas e penetram nas altas esferas do pensamento.
No
seu estudo sobre Bacon em On Modern
Origins: Essays in Early Modern Philosophy (Lexington Books, 2004), Richard
Kennington falha à sua habitual competência ao escrever esta monstruosidade: “A
filosofia e a ciência pré-modernas... não produziram nenhuma tecnologia
significativa. Ao contrário, os expoentes do racionalismo no século 17 – Bacon,
Descartes, Hobbes e Locke – são unânimes em declarar que ele pretende dominar a
natureza, e portanto criar uma ‘infinidade de artifícios’, para usar a
expressão de Descartes, que vão aliviar a condição humana. Seguramente, pode-se
dizer que a razão, na sua formulação pós-cartesiana, cumpriu sua promessa.”
A
escolha desses pioneiros da tecnologia não poderia ter sido pior. John Locke
não fez descoberta nenhuma nas ciências físicas, Hobbes criou uma série de
teorias falsas que só são úteis para a comunidade dos humoristas, e Bacon, do
qual se pode também dizer coisa idêntica, acabou demonstrando completa
ignorância e incompreensão até mesmo da ciência existente no seu tempo, da qual
ele fala com o desprezo característico do apedeuta presunçoso.
Thomas
Bodley, o fundador da célebre biblioteca de Oxford, escreveu-lhe a respeito:
“Não posso compreender as vossas queixas. Jamais se viu mais ardor pelas
ciências do que nos nossos dias. Censurais aos homens o negligenciar as
experiências, e no globo inteiro não se fazem senão experiências.”
Dos
quatro, só Descartes fez alguma coisa pelo progresso da tecnologia, sobretudo
com a criação da geometria analítica, mas, no campo estrito das matemáticas,
não se pode dizer que tenha superado espetacularmente seus antecessores Viète,
Kepler, Galileu, Tycho de Brahe e tantos outros.
É
também um tanto ridículo depreciar a tecnologia pré-moderna diante das
prodigiosas realizações da arquitetura gótica ou diante do fato de que até hoje
a ciência do Egito antigo espanta e desnorteia os investigadores. Mais
inexplicável ainda, nessa perspectiva, é que toda a fundamentação teórica da
moderna economia capitalista já estivesse pronta entre os escolásticos,
alegadamente os piores inimigos da modernidade, dois séculos antes que Adam
Smith arranhasse as primeiras noções a respeito.
A
relação de causa-e-efeito entre a filosofia racionalista e o progresso
tecnológico parece cada vez mais evanescente e subsiste antes como slogan de propaganda do que como
realidade histórica. O mais curioso, para não dizer doentio, é que esse slogan seja brandido como arma até mesmo
pelos mais ferozes antirracionalistas, como os discípulos de Nietzsche, de Paul
Feyerabend ou de Jacques Derrida. Sepultaram a modernidade, mas não cessam de
invocar o seu fantasma para assustar cristãos.
(Olavo de Carvalho, Diário
do Comércio, 9 de outubro de 2013)