sexta-feira, novembro 22, 2013

O calcanhar de Aquiles de Schwartsman

O terrível deus Moloque
Hélio Schwartsman, colunista da Folha de S. Paulo, é um ótimo escritor, mas deixa a desejar quando o assunto é uma leitura contextualizada das Escrituras Hebraicas. No último domingo (16/11/2013), ele citou Deuteronômio 7 como “evidência” da sede de sangue de Yahweh, nas páginas do Antigo Testamento. Na referida passagem, Deus ordena os israelitas destruir todas as nações que moravam em Canaã, a terra prometida aos patriarcas hebreus. O texto (v. 2) é explícito: “Destruam-nos completamente [...] não tenham misericórdia deles.” Permita-me fazer três considerações a respeito do assunto, que não encerram um tema tão amplo como esse, mas levantam alguns pontos ignorados por Schwartsman e outros:

1) O que Hélio e outros tantos críticos da Bíblia esquecem é que ela não foi escrita em português, muito menos no século 21. A linguagem de Deuteronômio é hiperbólica, e segue o estilo literário da época em que foi escrito, o segundo milênio a.C. O verbo hebraico hrm, traduzido como “destruir completamente” não deve ser tomado ao pé da letra. Por exemplo, o faraó Tutmoses III afimou que “derrubou o exército de Mitani em uma hora, e o aniquilou totalmente”. Mitani continuou no palco do Antigo Oriente Médio por mais uns 100 anos. Outro exemplo é a estela do faraó Merneptah (1200 a.C.), na qual ele afirma que “Israel estava destruído, e sua descendência não exista mais”. Um terceiro e último exemplo (de vários que poderiam ser dados) está na chamada Pedra Moabita do rei Mesha, mencionado no livro de 2 Reis. Nesse documento, ele se exalta ao dizer que destruiu o reino de Israel para sempre. Novamente, temos um exagero aqui. Esse documento foi escrito entre 840/830 a.C., e o reino de Israel foi destruído cem anos mais tarde pelos assírios. Um leitor atento do livro de Deuteronômio não levaria tais palavras ao pé da letra. Provavelmente, aqueles que seriam (e foram mortos) eram combatentes, não meros civis. Respeitados especialistas em literatura do Oriente Médio, como Kenneth Kitchen e James Hoffmeier, concordam com essa conclusão.

2) Hélio se esquece que no mesmo livro citado (Deuteronômio) encontramos uma recomendação no mínimo intrigante: ao chegar em uma cidade de Canaã, paz deveria ser oferecida àqueles habitantes (20:10). Esse texto e outros demonstram que a conquista de Canaã não se tratava de uma antiga versão da série “Desejo de Matar”, de Charles Bronson! Existia uma alternativa pacífica.

3) Por que matar os inocentes cananeus? Além de práticas como incesto e bestialismo, os cananeus tinham o estranho hábito de sacrificar crianças a um deus chamado Moloque (ou Qemosh, em Moabe). Existem diversos restos arqueológicos em vários pontos de Canaã que atestam a prática desse culto. Levítico 20:1-5 proíbe veementemente a adoração a esse deus por um israelita, inclusive sob pena de morte. Convenhamos, se você descobre que seu vizinho pratica sacrifícios humanos, queimando crianças em uma capelinha no quintal, você iria respeitar essa “opção cultural” dele? Francamente!

Troquei dois emails com o Hélio neste ano. Num deles, sugeri a ele a leitura da excelente obra de Paul Copan, Is God a Moral Monster? Making Sense the Old Testament God (Baker, 2011). Três capítulos da obra abordam a conquista de Canaã e a 'matança' dos seus habitantes. Até onde eu saiba, não existe previsão de esse livro ser traduzido para o português, o que é uma pena. Não sei se o Hélio foi atrás da obra, mas estou certo de que ela o ajudaria a corrigir algumas distorções populares a respeito do Deus do Antigo Testamento.

(Luiz Gustavo Assis é formado em teologia e cursa o mestrado nos EUA)