terça-feira, março 25, 2014

Observações dependem de teorias

Dois lados da mesma moeda
No texto anterior, vimos que o processo indutivo, ainda que tenha premissas verdadeiras, pode levar um observador atento a conclusões falsas. Por isso, ele não seria um critério seguro para demarcar “o que é” e “o que não é” ciência. Ele é importante, mas tem seus limites. Aqui, quero explorar melhor essa questão. Arrisco-me a dizer que o x da questão não é apenas que uma observação pode induzir alguém a uma conclusão falsa. A grande questão é que toda observação só faz sentido à luz de algum tipo de teoria. Comecemos com Charles Darwin (1809-1882). O cientista inglês era muito perspicaz, não apenas na biologia, mas em outras áreas envolvendo filosofia da ciência. Em 1861, ele escreveu uma carta a Henry Fawcett sobre uma situação curiosa que ocorreu no passado com os geólogos britânicos. Era o início do século 19 e os membros da Geological Society de Londres estavam cansados de intermináveis discussões teóricas e de explicações cada vez mais vazias sobre o desenvolvimento do planeta Terra. Assim, tomaram uma decisão extremista: não haveria mais discussões teóricas em suas reuniões. Eles apenas contemplariam “os fatos”, coletariam informações e fariam observações diretas. E, quando tivessem um conjunto relativamente significativo de dados, poderiam partir para uma teorização que fosse mais expressiva e consistente. Pelo menos era assim que pensavam. A visão de Darwin sobre o episódio é muito relevante:

“Há cerca de trinta anos, falou-se muito que os geólogos deveriam apenas observar, e não teorizar; e lembro-me bem de alguém dizer que, nesse ritmo, seria melhor um homem entrar numa pedreira e contar os pedregulhos e descrever as cores. Estranho que ninguém tenha visto que toda observação deve ser a favor ou contra alguma concepção para ter alguma serventia!”

O falecido Stephen Jay Gould (1941-2002) achou tão significativa essa última frase para pensar sobre o funcionamento da ciência que ela virou sua máxima preferida. “Toda observação deve ser a favor ou contra alguma concepção para ter alguma serventia!” Em outras palavras, uma observação só faz sentido à luz de uma teoria. Aliás, qualquer observação só faz sentido se uma teoria estiver pressuposta para lhe dar alguma base.

Pense no exemplo do próprio Darwin: sem uma teoria, como os geólogos saberiam qual rocha seria expressiva para observação e qual deveria ser ignorada? Aliás, alguma deveria ser ignorada? Eu teria que olhar e descrever todo tipo de rocha de um determinado espaço? Se sim, de que espaço? Para qual observação eu faria as anotações? E o que eu anotaria das rochas? Seria relevante anotar a cor? O tamanho? O peso? O formato? Ou essas coisas não têm importância? Seria pertinente anotar que eu encontrei uma rocha x, perto da rocha y, na camada z? Ou isso é irrelevante? Alguém pode se interessar por uma determinada rachadura, mas rachaduras são importantes? Sem uma teoria para dialogar é impossível responder de forma satisfatória a qualquer uma dessas perguntas. Elas exigem algum nível de teorização, algum tipo de abstração conceitual a fim de fazerem algum sentido.

Aliás, essas perguntas já pressupõem algum nível de teorização, e quanto mais sofisticadas forem as teorias que estiverem pressupostas, melhores serão as perguntas e mais aportes teóricos serão necessários a fim de guiar determinado experimento. Afinal, se eu fizer uma anotação de que encontrei a rocha x na camada y, ela só terá valor porque parto de uma teoria que me diz que, ao encontrar uma rocha numa determinada camada geológica, ela pode me indicar seu ambiente de formação e sua idade. Sem essa teorização, por que eu anotaria onde encontrei determinada rocha?

Um exemplo de observação esquisita poderia lançar luz maior sobre essa questão. Certa vez, Johannes Kepler (1571-1630) anotou em seu caderno: “Marte é quadrado e intensamente colorido.” O adjetivo “esquisita” demonstra bem minhas pressuposições: hoje sabemos que Marte não é quadrado, nem intensamente colorido. Como alguém pode se dar ao absurdo de anotar que um planeta é quadrado e colorido?

Um leitor mais atento diria que o erro de Kepler era fruto de uma observação feita em um telescópio galileano. Outro explicaria que a anotação de Kepler é irrelevante porque, na época dele, não se sabia que um planeta é esférico porque a força gravitacional dele atrai tudo para seu centro, incluindo sua massa, conferindo, assim, a forma esférica que ele possui. Ainda outro esclareceria que Marte tem uma aparência avermelhada, fruto das enormes extensões de solo árido de sua superfície.

Aqui, o importante é observar que todas essas correções não são fruto de uma observação versus outra, mas pressupõem algum tipo de teoria, seja ela decorrente do funcionamento da gravidade de um planeta, seja do seu formato, seja do seu solo, seja ainda de um possível erro óptico que um telescópio galileano pode ocasionar. Mas, para eu ter a noção de que, ainda que veja no meu telescópio um planeta quadrado, essa observação não é segura ou não é relevante, é preciso que eu tenha em mente uma teoria sobre a formação dos planetas. Se assim não for, por que não seria relevante anotar que o formato do planeta que estou vendo é quadrado? Isso me traz um alerta importante: na ciência, uma teoria falsa e incompleta pode dar orientações falsas e incompletas, mesmo que eu seja um bom observador.

Teorias são importantes justamente por isto: elas ajudam a lançar luz nas observações que precisam ser feitas. Elas me auxiliam, me guiam a fim de que eu não faça uma lista interminável de observações vazias ou colete uma série de dados que sejam totalmente sem sentido. Por outro lado, as observações lançam luz sobre as teorias, ajudando a refiná-las e a aperfeiçoá-las. Ambas são como dois lados de uma mesma moeda: não há a possibilidade de existir um sem o outro.

(Bruno Ribeiro é formando em Comunicação Social [Rádio e TV] pela Universidade Federal da Paraíba e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação na mesma instituição)

Referências:
CHALMERS, Alan. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.
GOULD, Stephen Jay. Dinossauro no palheiro: reflexões sobre história natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MOURÃO, R. R. Freitas. O livro de ouro do Universo. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2000.