domingo, abril 13, 2014

O sexo como ele (não) é

Ideias distorcidas sobre sexo
Na era “analógica”, eram os papos entre amigos, os parcos e entrecortados conselhos dos pais e, principalmente, a prática - sempre repleta de muitas tentativas e muitos erros. Na era digital, são os filmes pornográficos. Numa sociedade cuja educação sexual é falha, cercada de tabus, a internet de alta velocidade inundou computadores, tablets e smartphones de adolescentes e jovens com uma quantidade sem precedentes de filmes de conteúdo explícito, tornando as distorções, os estereótipos e a performance espetacularizada dessas obras, muitas vezes, a referência principal de quem está começando a vida sexual. A objetificação da mulher, a supremacia do contato genital sobre as trocas afetivas e o raro uso de camisinha são características dos filmes pornô que se reproduzem na vida real, atestam especialistas.

A publicitária e empresária inglesa Cindy Gallop, de 54 anos, foi das primeiras “autoridades” no tema a observar o fenômeno global. Criadora de um site [...] de vídeos e textos com um contraponto “mais humano” à robótica pornografia tradicional, ela diz ter notado um crescente comportamento sexual caricato nos homens com quem sai, a maioria na casa dos “vinte e poucos anos”. “O que eu estava encontrando eram as ramificações da onipresença do pornô hardcore na nossa cultura”, lembra essa filha de pai britânico e mãe chinesa, criada em Brunei e, hoje, moradora de Nova York.

Cindy não é, nem de longe, uma puritana. No seu site, em palestras mundo afora e no livro de 2011 Make Love Not Porn: Technology’s Hardcore Impact on Human Behavior (Faça amor, não pornografia: O impacto do pornô hardcore no comportamento humano, em tradução livre), ela usa linguagem e conceitos libertários. Mas critica a exposição de crianças e adolescentes desde cedo ao material pornográfico da web: “Está se formando uma geração inteira de meninos que crescerá acreditando que aquilo que veem nos vídeos é a forma como se deve fazer sexo. Os programas de educação sexual são precários, e os pais continuam tendo dificuldade de tratar desse assunto com os filhos. Isso não é nada bom.”

De acordo com levantamento da consultoria Nielsen, dois em cada três consumidores de pornografia na internet são homens. Assim, não é raro que as fantasias masculinas extrapolem o mundo digital e acabem na rotina sexual dos casais. O programador carioca Rodrigo, de 27 anos, conta ser um consumidor assíduo de pornô. E admite que isso influencia as relações com a namorada. “Com certeza em algum momento da vida rola aquele instante em que você percebe que a pornografia está para o sexo como (o filme) ‘Velozes e furiosos’ está para dirigir”, compara o jovem, para quem o caráter espetacular e emocionante dos filmes pornô pode tornar frustrantes as relações reais. “Vale mais uma boa masturbação do que uma transa ruim.”

As mulheres já estão se adaptando aos desejos dos parceiros sob influência dos filmes. Com isso, formam-se casais que só sentem prazer se seguirem o roteiro do mercado pornô, explica a inglesa Cindy: “No mundo real, uma das coisas mais prazerosas é o contato de pele. É uma delícia transar com os braços envolvendo o parceiro, com os corpos apertadinhos. Só que isso é inadmissível no hardcore, pois estaria obstruindo o olhar da câmera, que quer focar bem o famigerado ponto de entrada. Se tomarmos a regra desses filmes, todos os homens gostam de dar tapas, todas as mulheres gostam de sexo anal e de xingamentos, e basta uma mínima estimulação do clitóris para que elas estejam prontinhas. Sem falar no clichê de que elas têm orgasmos o tempo todo, e nas mais esdrúxulas posições.”

O estudo “Pornografia, desigualdade de gênero e agressão sexual contra mulheres”, feito pela pesquisadora brasileira Lylla Cysne Frota D’Abreu, da Universidade de Potsdam, na Alemanha, lançou um outro olhar sobre a questão. Para o trabalho, publicado ano passado, Lylla entrevistou estudantes universitários brasileiros do sexo masculino e revelou que 99,7% deles já haviam acessado conteúdo pornô on-line, 54,3% o faziam com frequência e, entre os mais assíduos, eram maiores os casos de agressões sexuais contra mulheres. “O fenômeno inclui uma ampla variedade de comportamentos, desde passar a mão e tirar peças de roupa, passando por coerção sexual e até estupro”, ela define. [...]

Uma pesquisa recente revelou que, no Reino Unido, um terço das crianças de até 10 anos já havia acessado algum tipo de conteúdo pornográfico on-line. Mais de 80% dos adolescentes de 14 a 16 anos o faziam regularmente, dois terços deles por meio de smartphones. Ao mesmo tempo, 70% dos entrevistados disseram nunca ter feito sexo, o que torna a experiência na internet sua única referência sexual.

Segundo Junia de Vilhena, psicanalista do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, a visão distorcida sobre o sexo tem raízes antigas e só foi agravada pela disseminação do pornô on-line. “Essa pressão sobre a mulher, que tem que satisfazer o homem na cama, é fruto da educação machista comum em vários países. A maior característica da pornografia é suprimir a fase de sedução. Pornografia é a antítese do erotismo”, diz Junia. “A pressão pelo desempenho faz com que rapazes de menos de 19 anos consumam Viagra, com medo de falhar.” [...]

X., 23 anos, [escreveu anonimamente a site]: “A partir dos 13 anos, quando comecei a usar computador, virei uma ávida consumidora de pornografia em vídeo. Lentamente subi na escala, assistindo a perversões mais doentias, até chegar ao que poderia definir como meu limite final. Nunca tive uma relação sexual funcional. Nem creio que um dia terei. Ninguém me leva ao orgasmo. Só chego ao clímax sozinha e me envergonho das minhas fantasias. Pré-adolescentes precisam de educação sexual de verdade, para não virar capachos ou vítimas inconscientes dos caprichos alheios.”