domingo, junho 22, 2014

Sentido: quaestio magna

Quando o horizonte desaparece
“A crise de sentido não é uma crise entre outras, mas é a crise fundamental, que atravessa todas as outras crises e as condiciona. Trata-se de uma crise qualitativamente diferente das outras, e isso por vários motivos. Primeiro, porque mexe com a vida como um todo e não com uma parte dela, qual seja, a vida econômica, a vida política, a vida emocional, etc. Segundo, porque essa crise não diz respeito apenas ao significado ordinário e direto das coisas, mas, sim, ao sentido último de cada coisa. Para que, no fim das contas, existe o trabalho, a técnica, a política, a arte, a justiça, o amor? Em terceiro lugar, porque a crise de sentido não concerne a essa ou àquela pessoa ou a tal ou tal categoria social, mas a todos e a cada um dos seres humanos, sem exceção. Cada um tem que se haver com o sentido de sua vida e de sua morte, de seu agir e de seu destino definitivo. Apesar da sua decantada autonomia, os grandes valores instituídos, como família, trabalho, ciência e política, estão, eles também, submetidos ao processo niilista: eles perdem valor.

“Essa é a experiência fundamental da cultura imperante. Mas de onde provém esse pathos, esse sentimento de entropia axiológica e mesmo ontológica? Da desvinculação desses valores de seu princípio mais originário por obra dessa mesma cultura. Esta, achando – supremo engodo! – que Deus lhe roubava sentido e buscando, em contrapartida, fundar a vida em si mesma, acabou por esvaziar a própria vida. O resultado era logicamente esperado: quando se apaga o sol, vem a escuridão; quando a fonte seca, o rio morre; quando o horizonte desaparece, o viajante perde a direção. A vida então se torna um tédio sem remédio, contendo apenas intervalos de sentido. Sem Deus, subsistem ilhas de sentido num mar de absurdo. E, contudo, o mar continua subindo e ameaça submergir também as ilhas.

“Chamar de ‘niilismo’ a crise maior de nosso tempo foi mérito de Nietzsche. Trata-se, contudo, de um mérito relativo, pois [...] não é toda a cultura atual que é niilista, mas apenas a dominante. Mas, também, Nietzsche nunca pretendeu que as maiorias pudessem viver sob o signo da ‘morte de Deus’: só uma aristocracia teria a energia para isso. Outro mérito de Nietzsche foi ter visto na figura de Deus o sentido supremo e fundamento de todos os outros sentidos, como o ético e o metafísico. Mas tal mérito vira demérito na medida em que aquele pensador interpretou a equivalência Deus = Sentido de um modo totalmente enviesado: Deus seria o pseudossentido, a máscara do Nada. Assim, só caindo essa máscara, com a ‘morte de Deus’, ficaria aberto o caminho para o sentido autêntico, que chamou ‘vontade de potência’ e ‘eterno retorno’. [...]

“Notável exceção constitui a interpretação de Heidegger, que põe no respeito e na escuta do Ser o princípio da superação do nietzscheísmo, sem que, contudo, resolva a questão do niilismo em geral, por ter permanecido caudatário do imanentismo. Ademais, Heidegger quis superar o niilismo no plano do puro pensar. Mas para vencer o niilismo não basta filosofia, por mais misticismo ontológico que nela se injete. A ‘Seinsphilosophia’ heideggeriana só pode vencer a Filosofia do Nada, não o próprio Nada, tal como se manifesta na experiência concreta da finitude, vivida na culpa, na dor e na morte. Por fim, para superar o Nada não basta o Ser abstrato e formal do pensamento heideggeriano, por mais ontológico que se queira. Precisa-se do Ser realmente existente, o ‘Ipsum Esse Subsistens’, pois só nEle pode haver salvação, que é, em verdade, o nome religioso do sentido.”

(O Livro do Sentido, v. I, p. 137, 138; colaboração de Frank de Souza Mangabeira)