terça-feira, julho 08, 2014

Banalização do sexo e o novo culto a Afrodite

A falsa deusa do sexo falso
“De relação interpessoal, o sexo se torna cada vez mais mero intercurso corporal. Perde sua força simbólica de remeter à comunhão de pessoas e destinos, para se limitar ao efêmero estremecimento psicofísico do espasmo. A convivência a dois se baseia mais no sentimento que no consentimento. É relação ‘pura’, enquanto reduzida à gratificação emocional. [...] Ora, levando a lógica do sexismo às suas consequências extremas, eis a miséria a que chega a sexualidade, em todos os seus aspectos: o corpo se reduz à mera ‘máquina desejante’; a alma, a suporte das pulsões; o romance, à tática da sedução; as carícias, à preparação para o intercurso; a pessoa, a parceiro sexual ou a corpo-objeto; a relação, à conjunção de órgãos; e o casamento, ao consenso para a cessão recíproca dos corpos em função do prazer. Caricatura? Mas hoje não nos aproximamos perigosamente dela?

“O pós-moderno inventou o amor plástico, fluido. É o chamado ‘amor líquido’. As novelas refletem e ao mesmo tempo difundem o modelo de relações sem vínculo. É um amor avulso, sem consistência, segundo a metáfora popular do ‘anel de vidro’, traduzida pela expressão hoje corrente: ‘eterno enquanto dura’. [...] Através de teorias psicológicas e práticas libertárias várias, despoja-se o sexo de sua misteriosidade natural, com o fim de quebrar todos os tabus, legítimos ou não, tornando-o, assim, mais disponível. Consequentemente, perde-se também a ideia de pudor, como guarda e proteção ético-psicológica da própria intimidade. É o que se vê hoje na licenciosidade da linguagem, no uso das roupas ‘sexy’ e nas posturas socioafetivas ‘liberadas’. O comportamento homem-mulher, especialmente na mídia, bordeja frequentemente a esfera do proibido, forçando seus limites por uma tática sutil de transgressão. Isso tudo levou a falar em ‘sociedade impudente’. A folha de parreira teria mudado de lugar; o que ela cobre agora não são as partes pudendas, mas o rosto da mulher ou do homem. Hoje, o prazer sexual não é só permitido, mas ordenado: você tem que gozar! Daí expressões, hoje não raras, como ‘curta seu amor’, ‘beije o quanto puder’, ‘goze de todas as maneiras’, ‘aproveite todas as ocasiões’.

“Deixar escapar uma oportunidade de gozo desperta pesar, quase culpa: ‘Que pena, devia ter aproveitado.’ O prazer tornou-se um imperativo tirânico. Outrora havia culpa por transgredir um interdito sexual; hoje, ao contrário, há culpa por não transgredi-lo, perdendo assim o acréscimo de prazer que a infração confere. Gozar é preciso, mesmo à custa da simulação e da mentira. Há, certamente, limites para o sexo, mas se restringem ao consentimento e à prevenção das consequências negativas: doença (aids, DST), gravidez e outros ‘incômodos’ de tipo psicológico, social, quando não policial. É a versão moderna da antiga moral dos velhacos: ‘Si non caste, caute’ (se não puder ser casto, seja pelo menos cauteloso). [...]

“Por que a hipersexualização da vida hoje? No fundo, é por falta de valores mais altos, que possam ‘encher a vida de sentido’. De fato, com o fim de reencantar a vida, que se tornou monótona e maçante, no lugar das ideologias de ontem, recorre-se a novos derivativos, entre os quais avulta o sexo. Começa-se, assim, por erotizar o cotidiano para, depois, sexualizar as relações. Mas, como todo substituto acaba desmascarado, o tédio e o absurdo da vida retornam, encostando o homem novamente contra o muro do absurdo. 

“Em verdade, não há sexo, quer carnal, quer emocional, que possa preencher o vazio hiante de sentido. A resposta erótico-sexual não está à altura da pergunta existencial-espiritual. Daí a frustração que produz toda sexualidade que se pretenda plenificante. Forçar artificialmente os limites do prazer é aproximar-se do abismo. [...] Não que o sexo não possa dar certo sentido à vida. Mas tal sentido é sempre relativo e precário. Nunca será um sentido consistente, como o que dá a ética, e menos ainda um sentido transcendente, como o que oferece a fé. De resto, o sexo mesmo só ganha sentido no horizonte do eros e este, no horizonte do ágape.”

(O Livro do Sentido, p. 243-247; colaboração: Frank de Souza Mangabeira)