Não estuda, fala bobagem |
Provocou
polêmica um recente programa do jornalista americano Bill Maher. Por causa do
Islã. Por causa do islamismo. Disse Bill Maher que os “liberais” gostam de
defender os seus princípios quando as causas são politicamente corretas – a
defesa da liberdade de expressão; a defesa da liberdade de consciência; a
igualdade das mulheres; a igualdade das minorias; e etc. etc. Porém, quando
esses princípios não são respeitados pelas sociedades islâmicas, há um silêncio
covarde que se instala entre as matilhas. No programa, o filósofo e
neurocientista Sam Harris concordou. E acrescentou: os “liberais” estão sempre
a criticar os fundamentalistas cristãos quando há uma clínica de aborto
destruída. Mas, quando a religião muda de nome e alguém é condenado à morte
por apostasia, ou seja, por renúncia à fé islâmica, os únicos fundamentalistas
que eles criticam são os “islamofóbicos”. “Isso é uma estupidez intelectual”,
concluiu Harris.
Nem
de propósito: sentado na mesma mesa, o ator Ben Affleck, que nunca mais regulou
da cabeça depois da separação de Jennifer Lopez (opinião pessoal), resolveu
debitar todos os clichês que Maher e Harris estavam a criticar. Mostrou-se
indignado com a identificação entre Islã e terrorismo. Proclamou que a maioria
dos muçulmanos só quer viver pacificamente. E acusou os outros dois de “racismo”
(o termo “islamofobia” seria um pouco óbvio no contexto).
Longe
de mim criticar a sabedoria de um ator de Hollywood, que deve saber tanto de
islamismo como eu de física quântica. Até porque nada tenho a contestar. É
óbvio que não existe uma relação necessária entre Islã e terrorismo. É óbvio
que bilhões de muçulmanos só querem viver em paz. É óbvio que transformar uma
religião inteira em antro de malignidade é uma expressão de racismo. Mas também
deveria ser óbvio para a cabecinha de Affleck duas ou três ideias que até uma
criança entende sem esforço.
A
primeira é que a relação entre Islã e terrorismo não é feita pelos ocidentais.
Ela começa por ser estabelecida pelos próprios terroristas – aqueles que
afirmam matar em nome do Profeta. Isso pode ser injusto para a religião
islâmica. Mas a injustiça da identificação é cometida pelos próprios
terroristas muçulmanos. Constatar esse fato não é uma forma de “islamofobia”. É
simplesmente constatar um fato.
Mas
Ben Affleck comete um segundo erro, aliás comum em “celebridades” que se julgam
novos mandelas: não estuda o suficiente e fala do que não sabe. Como já foi
escrito nesta Folha (“Quem são os
muçulmanos?”, 28/5/2013), o mais completo estudo intelectual sobre os
muçulmanos de todo o mundo, realizado pelo Pew Research Center, apresenta um
filme assaz complicado.
Fato:
a esmagadora maioria repudia o terrorismo. Novo fato: a esmagadora maioria
também condena os castigos mais bárbaros da sharia.
Mas há exceções: em países como o Paquistão (88%), o Afeganistão (81%) ou o
Egito (70%), apedrejar mulheres adúlteras ou condenar à morte “culpados” de
apostasia continuam sendo esportes bastante praticados.
E,
claro, a sharia deve ser para a
maioria a fonte legal primária da organização social, o que implica que as
liberdades “liberais” do Ocidente não fazem grande furor em Damasco, Riad ou
Cabul. Constatar esse fato não é uma forma de “islamofobia”. É, novamente, a
simples constatação de um fato.
Por
último, se a memória não me atraiçoa, Ben Affleck dirigiu um filme, intitulado “Argo”,
sobre o resgate “in extremis” de funcionários
americanos da embaixada de Teerã quando Khomeini – o “Gandhi iraniano”, como
lhe chamou carinhosamente Foucault – iniciou a sua teocracia em 1979. No filme,
Affleck trata os iranianos como um bando de selvagens, prontos a tirar o
escalpe de qualquer cidadão do Grande Satã.
Não
vou pelo caminho mais fácil de considerar ligeiramente “islamofóbica” a redução
da grande civilização persa à caricatura que Affleck fez dela. Mas talvez seja
interessante relembrar o que os dirigentes iranianos disseram sobre o filme e
sobre Affleck. Resumindo, o filme era insultuoso e Affleck, “persona non grata”.
Espero
que, depois da sua “performance” na TV, o ator esteja reabilitado aos olhos dos
aiatolás. E uma viagem a Teerã talvez fosse o melhor teste. Tenho a certeza de que
a recepção seria literalmente de rebentar.
(João Pereira Coutinho,
Folha)