terça-feira, outubro 07, 2014

Ben Affleck e a islamofobia

Não estuda, fala bobagem
Provocou polêmica um recente programa do jornalista americano Bill Maher. Por causa do Islã. Por causa do islamismo. Disse Bill Maher que os “liberais” gostam de defender os seus princípios quando as causas são politicamente corretas – a defesa da liberdade de expressão; a defesa da liberdade de consciência; a igualdade das mulheres; a igualdade das minorias; e etc. etc. Porém, quando esses princípios não são respeitados pelas sociedades islâmicas, há um silêncio covarde que se instala entre as matilhas. No programa, o filósofo e neurocientista Sam Harris concordou. E acrescentou: os “liberais” estão sempre a criticar os fundamentalistas cristãos quando há uma clínica de aborto destruída. Mas, quando a religião muda de nome e alguém é condenado à morte por apostasia, ou seja, por renúncia à fé islâmica, os únicos fundamentalistas que eles criticam são os “islamofóbicos”. “Isso é uma estupidez intelectual”, concluiu Harris.

Nem de propósito: sentado na mesma mesa, o ator Ben Affleck, que nunca mais regulou da cabeça depois da separação de Jennifer Lopez (opinião pessoal), resolveu debitar todos os clichês que Maher e Harris estavam a criticar. Mostrou-se indignado com a identificação entre Islã e terrorismo. Proclamou que a maioria dos muçulmanos só quer viver pacificamente. E acusou os outros dois de “racismo” (o termo “islamofobia” seria um pouco óbvio no contexto).

Longe de mim criticar a sabedoria de um ator de Hollywood, que deve saber tanto de islamismo como eu de física quântica. Até porque nada tenho a contestar. É óbvio que não existe uma relação necessária entre Islã e terrorismo. É óbvio que bilhões de muçulmanos só querem viver em paz. É óbvio que transformar uma religião inteira em antro de malignidade é uma expressão de racismo. Mas também deveria ser óbvio para a cabecinha de Affleck duas ou três ideias que até uma criança entende sem esforço.

A primeira é que a relação entre Islã e terrorismo não é feita pelos ocidentais. Ela começa por ser estabelecida pelos próprios terroristas – aqueles que afirmam matar em nome do Profeta. Isso pode ser injusto para a religião islâmica. Mas a injustiça da identificação é cometida pelos próprios terroristas muçulmanos. Constatar esse fato não é uma forma de “islamofobia”. É simplesmente constatar um fato.

Mas Ben Affleck comete um segundo erro, aliás comum em “celebridades” que se julgam novos mandelas: não estuda o suficiente e fala do que não sabe. Como já foi escrito nesta Folha (“Quem são os muçulmanos?”, 28/5/2013), o mais completo estudo intelectual sobre os muçulmanos de todo o mundo, realizado pelo Pew Research Center, apresenta um filme assaz complicado.

Fato: a esmagadora maioria repudia o terrorismo. Novo fato: a esmagadora maioria também condena os castigos mais bárbaros da sharia. Mas há exceções: em países como o Paquistão (88%), o Afeganistão (81%) ou o Egito (70%), apedrejar mulheres adúlteras ou condenar à morte “culpados” de apostasia continuam sendo esportes bastante praticados.

E, claro, a sharia deve ser para a maioria a fonte legal primária da organização social, o que implica que as liberdades “liberais” do Ocidente não fazem grande furor em Damasco, Riad ou Cabul. Constatar esse fato não é uma forma de “islamofobia”. É, novamente, a simples constatação de um fato.

Por último, se a memória não me atraiçoa, Ben Affleck dirigiu um filme, intitulado “Argo”, sobre o resgate “in extremis” de funcionários americanos da embaixada de Teerã quando Khomeini – o “Gandhi iraniano”, como lhe chamou carinhosamente Foucault – iniciou a sua teocracia em 1979. No filme, Affleck trata os iranianos como um bando de selvagens, prontos a tirar o escalpe de qualquer cidadão do Grande Satã.

Não vou pelo caminho mais fácil de considerar ligeiramente “islamofóbica” a redução da grande civilização persa à caricatura que Affleck fez dela. Mas talvez seja interessante relembrar o que os dirigentes iranianos disseram sobre o filme e sobre Affleck. Resumindo, o filme era insultuoso e Affleck, “persona non grata”.

Espero que, depois da sua “performance” na TV, o ator esteja reabilitado aos olhos dos aiatolás. E uma viagem a Teerã talvez fosse o melhor teste. Tenho a certeza de que a recepção seria literalmente de rebentar.

(João Pereira Coutinho, Folha)