Um passado que condena |
Durante
300 anos, entre 9 e 14 milhões de africanos foram feitos escravos e cruzaram o
Atlântico para servir a uma economia com base na exploração das Américas. Nas
centenas de milhares de expedições que faziam a rota do tráfico negreiro,
aqueles africanos não eram “nem livres para morrer”, como diria Castro Alves.
Mas se por décadas essa atividade sustentou um sistema de produção, quem é que
financiava o comércio de seres humanos? Quem é que lucrou e enriqueceu? Documentos
e pesquisas feitas nos últimos anos começam a mexer com um verdadeiro tabu.
Longe dos portos de Lisboa, Luanda ou Salvador, eram banqueiros e empresários
suíços que, de uma forma expressiva, financiavam o tráfico de escravos e se
enriqueciam com ele. Hoje, parte dos prédios imponentes e palácios de cidades
na Suíça compõem um cenário idílico. Mas a realidade é que foram erguidos com o
lucro dessa atividade, na época legal.
Mesmo
sem acesso ao mar, sem colônias e com uma democracia exemplar, a Suíça fez
parte da economia da escravidão durante séculos e, segundo especialistas, seus
empresários e banqueiros acumularam fortunas com isso.
O
tráfico acontecia em um sistema de comércio triangular entre Europa, África e
Américas. Dos portos europeus, saíam barcos carregados com produtos têxteis
que, nas costas da África, eram trocados por seres humanos. Uma vez embarcados
nos navios, os escravos eram levados para as Américas e revendidos. Até que
esses barcos voltassem para a Europa com o dinheiro, a expedição podia durar
dois anos.
Para
financiar essa viagem, e pagar pelo seguro da “mercadoria”, é que os suíços
entraram como parceiros. Bancos e famílias como Burckhardt, Weiss, Favre ou
Rivier financiaram dezenas de expedições, numa atividade bastante arriscada. As
ameaças eram de revoltas nos navios, de tempestades que poderiam provocar a
“perda total” da embarcação e mesmo surtos de doenças na travessia, matando
metade dos escravos.
Entre
1783 e 1790, os irmãos Weiss financiaram dez expedições em barcos que receberam
nomes como La Ville de Bâle (A cidade da Basileia).
As
estimativas apontam que, entre 1773 e 1830, mais de cem expedições foram
financiadas pelos suíços, o que significou o transporte de milhares de
africanos. Alguns historiadores, como Thomas David, Bouda Etemad e Janick
Marina Schaufelbuehl, estimam que os suíços financiaram o tráfico de 175 mil
escravos. Os barcos patrocinados pelos suíços saíam em sua grande maioria dos
portos no sul da França, como Nantes.
Nos
últimos anos, a organização não governamental Cooperaxion, com sede em Berna,
começou a fazer um banco de dados com base em documentos para apontar o
envolvimento de suíços e de instituições suíças no comércio de escravos. “O que
descobrimos é que o envolvimento foi registrado em diversas cidades, de
Neuchâtel a St. Gallen, da Basileia a Genebra”, declarou Izabel Barros,
historiadora brasileira que comanda parte da pesquisa na Suíça.
Segundo
ela, os suíços estavam envolvidos em cinco atividades principais. “No
financiamento das viagens intercontinentais, no comércio e produção de produtos
manufaturados, eram também proprietários de terras nas colônias das Américas e
do Caribe, havia igualmente militares que prestavam serviços às potências
coloniais e de uma forma positiva alguns se engajavam como abolicionistas”,
explicou a historiadora.
Na
cidade da Basileia, os documentos revelam que o empresário Christophe Bourcard
bancou mais de 20 expedições, com um total de sete mil escravos, entre 1766 e
1815. Em Zurique, Jean Conrad Hottinger comandou expedições para deportar quase
mil escravos. As pesquisas da instituição revelam ainda o amplo uso do sistema
financeiro de Genebra para bancar o esquema comercial. O banqueiro Isaac
Thellusson, por exemplo, investiu em pelo menos três expedições negreiras, o
mesmo feito pelo banco Banquet & Mallet.
Christophe
Jean Baur, sócio do banco Tourton & Baur, aplicou parte da sua fortuna em
1748 na Sociedade para o Comércio de Escravos de Angola. A rota principal era o
fornecimento de “produtos” para a Ilha de Santo Domingo, hoje o Haiti e a
República Dominicana. Já o conhecido banqueiro de Genebra, Antoine Bertrand,
comprou ações na Companhia da Luisiana, responsável por entregar escravos às
colônias francesas na América do Norte.
Segundo
o historiador e hoje deputado Hans Fässler, investidores de Genebra se aliaram
ao banco de Zurique Leu & Co para financiar a Dinamarca na compra de ilhas
que serviriam de entreposto para o tráfico de escravos em 1760. O Leu, nos anos
90, acabaria sendo comprado pelo Credit Suisse.
Até
hoje, uma rua no centro antigo de Genebra se chama Chemin Suriname, em
referência aos investimentos que banqueiros locais possuíam na América do Sul. “Os bancos suíços construíram parte de seu
patrimônio à custa do comércio de seres humanos”, declarou ao Estado o
sociólogo Jean Ziegler, autor de um livro que causou um terremoto no país nos
anos 90: A Suíça lava mais branco.
Mas
a participação dos empresários suíços não se limitava ao financiamento. Em
1685, Luís XIV expulsou os protestantes da França e, ao mesmo tempo, proibiu a
importação de tecidos de algodão da Índia. O resultado foi a transferência de
parte da indústria têxtil e de seus especialistas para regiões da Suíça, como
as cidades de Neuchâtel ou Bienne.
Nesses
locais, os tecidos eram recebidos da Índia e tingidos. A produção era então
embarcada para a África, onde seria usada como moeda de troca. Famílias como Petitpierre
e Favre, de Neuchâtel, Simon & Roques da Basileia foram algumas que
dominaram o comércio.
De
volta às cidades suíças, o resultado desses investimentos até hoje faz parte do
cenário de locais acima de qualquer suspeita e que transpiram uma aura de
ética. É em Neuchâtel que as construções estão mais associadas aos
investimentos relacionados à escravidão. Pela cidade, diversos palácios
construídos por aqueles que se enriqueceram com o comércio hoje servem como
prédios públicos.
Tanto
a biblioteca da cidade como o liceu foram construídos graças ao dinheiro
deixado por David de Pury, um dos financiadores do tráfico de escravos. A
câmara municipal também foi erguida com a fortuna que ele deixou para a cidade.
Um
dos principais museus da cidade ocupa um palacete deixado por James Ferdinand
de Pury, investidor na produção de tabaco no Brasil em sociedade com
Auguste-Frédéric de Meuron, oriundo de uma família de exportadores de produtos
têxteis para a África e financiador do tráfico de escravos. Em Neuchâtel, a
sede de seus negócios ficava no número 21, Rue des Moulins. Hoje, seu
escritório deu lugar a uma loja de vestidos de noiva.
O
prédio da reitoria da Universidade de Neuchâtel era um palacete construído por
Jacques-Louis Pourtalès, empresário que fez sua fortuna graças à troca de
tecidos por escravos na África, além de manter propriedades em Granada, no
Caribe. Seu filho entraria para a história da escravidão na ilha ao ser o
primeiro a vacinar os seus 300 escravos contra a varíola. Afinal, no século 18,
o preço de cada “cabeça” havia quadruplicado e manter vivos os escravos por
mais tempo significava uma redução nos custos de produção.
A
estimativa dos historiadores é de que Jacques-Louis de Pourtalès tenha se
transformado no suíço mais rico de seu tempo e numa das maiores fortunas da
Europa, avaliada na época em 18 milhões de libras suíças. Naqueles anos, um
professor ganhava no máximo 30 libras por ano. É dele também um dos hospitais
até hoje em funcionamento na cidade.
A
quatro quadras da reitoria da universidade, outro palácio chama a atenção.
Trata-se de uma obra de Alexandre DuPeyrou (1729-1794), um investidor na
exploração do Suriname. Entre seus frequentes convidados, um certo Jean-Jacques
Rousseau era presença constante no palácio.
(Estadão)
Nota:
Pelo que se vê, a Suíça não é essa “Brastemp” de educação, cultura e exemplo
democrático. Há muita sujeira debaixo do tapete de sua história. E mais uma vez
vemos que mesmo os melhores exemplos do que a humanidade pode oferecer sempre
estão maculados pela mancha do pecado. Nosso país está fundado na exploração,
na falta de ética, na corrupção e no derramamento de sangue. Mas, talvez, a
única diferença entre nós e os suíços resida no fato de que não fomos
competentes o bastante para enriquecer como eles. [MB]