terça-feira, novembro 04, 2014

Os corpos do crime

O novo rosto de Renée Zellweger
1. Que dizer do rosto da atriz Renée Zellweger? Explico ao leitor que passou férias na Lua: em noite de prêmios de Hollywood, Renée Zellweger apareceu no tapete vermelho. E o rosto não era o de Renée Zellweger. Tinha apenas uma vaga semelhança com o original, escondido sob golpes de bisturi e outras originalidades da cirurgia estética. O caso circulou pelo mundo e o mundo, pasmo e levemente ofendido, perguntou: Como é possível destruir um rosto e comprar outro para exibição pública? Entendo a pergunta. Sobretudo quando falamos de uma atriz: destruir o rosto, ou seja, destruir a capacidade de usá-lo como matéria-prima de tensões e emoções, é um ato de vandalismo que desafia as leis da lógica. Mas as causas da mudança em Renée não são difíceis de compreender. Feministas várias, indignadas com a indignação geral, acusaram a tirania falocêntrica de Hollywood de submeter as mulheres à ditadura da “juventude eterna”. O bisturi pode desafiar as leis da lógica, sim. Mas ele se explica pelas leis trabalhistas.

Lamento, mas não mordo inteiramente. E prefiro olhar para a filmografia da senhora. Em 20 anos de carreira, que podemos dizer do caso Renée Zellweger? Simples: a atriz não tem um único filme que possamos considerar “decente” (para usar um eufemismo). E, nos filmes menos embaraçosos (como “Cold Mountain” ou “Cinderella Man”), o que espanta é a ausência de uma personalidade forte – uma “marca autoral”, como se costuma dizer; ou como se costumava assistir nos filmes de Bette Davis, Audrey Hepburn ou Natalie Wood. As personagens de Renée Zellweger são baças, monocórdicas – em uma palavra, “desinteressantes”.

E se existe quem acredite que um ator interessante nem sempre nasce de uma pessoa interessante, eu discordo: terminei de ler a biografia de Laurence Olivier, escrita por Philip Ziegler, e o fascinante ator só é explicável pela fascinante pessoa que existia antes de entrar no palco. Só um ser humano completo (e complexo) vira um ator idem.

Tudo isso para dizer o quê? Uma conclusão muito simples: quando você precisa mudar o exterior por capricho é porque não existe grande coisa no interior para começar.

2. A revista americana Men’s Health elegeu o soldado Noah Galloway como “o corpo mais perfeito do mundo”. Pormenor: Noah Galloway não tem um braço e não tem uma perna. Mas isso não impediu a revista de fazer capa com o veterano de guerra e coroá-lo com semelhante epíteto adônico.

Era George Orwell, creio, quem dizia que o mais difícil no mundo era enxergar a realidade que temos diante dos olhos. Orwell tinha razão. Porque Noah Galloway não tem “o corpo mais perfeito do mundo”. Tem um corpo amputado, que só por covardia politicamente correta é possível classificar como “o mais perfeito do mundo”. Covardia e, pior que isso, uma desavergonhada falta de respeito pela deficiência física.

Ponto prévio: a deficiência física não tem nada de especial. É um fato moralmente neutro – como ser alto ou baixo, magro ou gordo, bonito ou feio. Mas não é um fato esteticamente neutro: o Corcunda de Notre Dame não está no mesmo patamar de Gisele Bündchen. E afirmar que um corpo sem um braço e uma perna é “o mais perfeito do mundo” soa tão ridículo como coroar Dilma Rousseff como a mulher mais bela do Brasil.

O que parece “moderninho” e “despreconceituoso” resvala tristemente para o anedótico e para o insultuoso. E, ironia maior, demonstra um desconforto com a própria ideia de deficiência física que se procura “normalizar” desesperadamente (e pateticamente) com delírios hiperbólicos de sentido inverso.

Porque esse é o problema eterno do pensamento politicamente correto: para proteger a “sensibilidade” das minorias, as brigadas preferem a falsificação constante da realidade. Essa falsificação é sempre mais ofensiva do que qualquer discriminação real.

O pessoal da Men’s Health deveria saber que há deficiências maiores do que não ter braços ou pernas. Não ter cabeça, por exemplo, é mil vezes pior.

(João Pereira Coutinho, Folha.com)