sábado, março 14, 2015

O 15 de março e o adventista

Todos pela pátria amada
[Publico aqui a opinião do amigo e cidadão brasileiro adventista Marco Dourado:] 

Um pensador católico - não lembro se Tomás de Aquino ou Padre Vieira - disse certa vez que o bem deve satisfazer três requisitos: o fundamento, o propósito e o método. Isso posto, vamos à questão do posicionamento do cristão face às manifestações de domingo, 15/3/2015.

1) Fundamento. A democracia moderna é uma das maiores contribuições do pensamento e do ativismo cristão para o mundo. Por óbvio, não “evoluiu”, como querem alguns devotos da deusa “Historia”. Nasceu de parto complicado e extremamente demorado, com o concurso de fórceps - metáfora que desembocou em sangue de verdade (mais espesso que o sonho de um homem, segundo João Cabral de Melo Neto). Tão importante quanto ela é seu irmão por vezes subestimado: o Estado de Direito. Por que ambos não devem se separar? Democracia sem Estado de Direito pode se tornar tirania da maiorias, com direito a fogueiras. Estado de Direito sem democracia pode resultar em códigos os mais cruéis e irrazoáveis, também com direito a fogueiras. Assim, a combinação entre eles só consegue florescer em sociedades que dão o devido valor à liberdade e ao direito do indivíduo. Ou seja, é preciso muita luta e muita maturidade para implantá-los. E eterna vigilância para mantê-los.

O que ocorre hoje no Brasil é o açodamento em nível inédito do assalto ao Erário. E, pior, não apenas para o vil enriquecimento pessoal de asseclas de uma quadrilha, mas para a perpetuação de determinado grupo no poder, não à revelia das instituições, mas pela perversão delas. Mal comparando, não se trata simplesmente de estupros ocasionais, mas de raptos sistemáticos para fins de prostituição através das chamadas “escravas brancas”.

Todo cidadão, seja ou não cristão, entende que o usufruto de um bem público - um objeto material, um serviço ou um sistema - implica na responsabilidade de conservá-lo e, quando preciso, protegê-lo. E o estado democrático e de direito é, hoje, o bem mais escasso, frágil e ameaçado do planeta. Usufruir desse bem sem as devidas contrapartidas cidadãs é agir como um gigolô abominável e oportunista.

2) Propósito. Cada centavo procedente dos nossos impostos, quando subtraído por má gestão ou corrupção, contribui para piorar o horror cotidiano pelo qual passa o brasileiro: doentes agonizando por falta de leitos e medicamentos, escolas que formam semianalfabetos, estradas esburacadas que matam como numa guerra, epidemias mortíferas se disseminando progressivamente, falta de creches, de policiamento, de serviços básicos.

Ante esse quadro, cruzar os braços com a passividade quase beatífica da Amélia, considerada “mulher de verdade” na canção do saudoso Mário Lago, faz do cidadão um cúmplice, talvez pior que o meliante que desvia dinheiro público - este ao menos cede a uma pulsão, enquanto aquele se prostra na preguiça (Pv 26:13-16: “O preguiçoso diz: ‘Lá está um leão no caminho, um leão feroz rugindo nas ruas!’ Como a porta gira em suas dobradiças, assim o preguiçoso se revira em sua cama. O preguiçoso coloca a mão no prato, mas acha difícil demais levá-la de volta à boca. O preguiçoso considera-se mais sábio do que sete homens que respondem com bom senso.”) e, assim, não somente se faz merecedor do achaque como também estimula o corrupto a se tornar ainda mais ávido e ousado.    

Na lição da Escola Sabatina do dia 26/2/2015 (http://goo.gl/4cfe6R) há duas citações seríssimas a Ezequiel e a Salomão: “Se Eu disser ao perverso: Ó perverso, certamente, morrerás; e tu não falares, para avisar o perverso do seu caminho, morrerá esse perverso na sua iniquidade, mas o seu sangue Eu o demandarei de ti” (Ez 33:8). 

“Liberte os que estão sendo levados para a morte; socorra os que caminham trêmulos para a matança! Mesmo que você diga: ‘Não sabíamos o que estava acontecendo!’ Não o perceberia Aquele que pesa os corações? Não o saberia Aquele que preserva a sua vida? Não retribuirá Ele a cada um segundo o seu procedimento? [...] Aqui vão outros ditados dos sábios: Agir com parcialidade nos julgamentos não é nada bom. Quem disser ao ímpio: ‘Você é justo’, será amaldiçoado pelo povo e sofrerá a indignação das nações. Mas os que condenam o culpado terão vida agradável; receberão grandes bênçãos. A resposta sincera é como beijo nos lábios. Termine primeiro o seu trabalho a céu aberto; deixe pronta a sua lavoura. Depois constitua família. Não testemunhe sem motivo contra o seu próximo nem use os seus lábios para enganá-lo” (Pv 24:11, 12, 23-28)

Prossegue a lição: a lei de Moisés adverte claramente que aqueles que deixam de denunciar o que presenciam levam sobre si a iniquidade (Lv 5:1: “Os casos em que é preciso oferecer sacrifício são os seguintes: Se alguém for chamado como testemunha, mas não disser aquilo que viu ou que ouviu falar, então será culpado e merecerá castigo.” Podemos não ser capazes de agir contra o crime, mas se guardamos silêncio sobre o que vemos, somos participantes da culpa junto com o criminoso. Pelo nosso silêncio, nos tornamos cúmplices.
  
3) Método. Se a questão em tela diz respeito à preservação do estado democrático e de direito, não faria sentido algum violá-lo para promovê-lo. Isso é comezinho, chega a ser uma platitude. Cristão (ou cidadão) algum está autorizado, por sabe-se lá que motivos ou diretrizes, a cortar a orelha do guarda incumbido de prender Jesus, a exemplo de Pedro. Mas deve, sim, repreender o Herodes Antipas que infringe descaradamente uma lei civil - como fez João Batista, a custo da própria liberdade e, pouco depois, da própria vida (relembrando: Herodíade era filha de Berenice e de Aristóbulo IV - filho de Herodes, o grande, matador de criancinhas. Teve ela como primeiro marido Herodes Filipe, filho de Herodes com Mariana, filha do sumo-sacerdote Simão. Herodíade e Herodes Filipe tiveram uma filha, Salomé. Contudo, Herodíade se separou deste marido para casar com outro meio-tio, Herodes Antipas; este, para poder casar com Herodíade, teve que se divorciar da sua primeira esposa, Fasélia, filha do rei nabateu Aretas IV. A união foi condenada por João Batista e gerou animosidade entre o povo, que acusou o casal de incesto).

Conclusão. Sendo o fundamento e o propósito das manifestações, a meu ver, inatacáveis, resta a avaliação do método. Adventistas do sétimo dia foram instruídos por Ellen G. White, ainda no século 19, a participar de eleições [não ordinárias] aos sábados quando o tema se referisse a políticas que impactassem nos valores cristãos da nação: aborto, dia de guarda obrigatório, temperança, etc. (Confira este artigo e a nota lá no fim deste texto.)

Ora, a democracia não acaba em uma cabine de votação. Continua a partir dali. Aliás, restringir a cidadania ao exercício do voto é uma das principais causas da degradação institucional a que chegamos.

Jesus converteu o coração de zelotes, mas não deixou de pagar impostos. Não deixou de respeitar as autoridades, mas, sempre com lágrimas na voz, conclamou-as ao arrependimento e à reforma de vida lançando mão de vocativos nada politicamente corretos: hipócritas, raça de víboras, merecedores do fogo do geena.

Como servidor do Ministério Público Federal há vinte anos, tenho cotidianamente ao alcance da vista o trabalho de colegas e de procuradores trabalhando infatigavelmente em operações como a Lava-Jato, sob estresse físico e emocional limítrofes. Mas, principalmente, sob ameaças explicitas, agressões (a casa do procurador-geral da república foi arrombada agora em janeiro) e retaliações orçamentárias desde a década passada, quando do mensalão. E posso dizer, como servidor público, como cidadão e como cristão: ajoelhar-se buscando a misericórdia e a intervenção divina não implica ajoelhar-se ante um colarinho branco.

Um feliz sábado para todos. E um grande 15/3 para o nosso país.

Marco Antonio Dourado

* A citação a Ellen White por parte de seu neto Arthur não endossa, de fato, votação política ORDINÁRIA no sábado. Contudo, percebe-se que ela admitiu que em caso de pleitos cujas propostas - virtuosas ou perversas - pudessem impactar fortemente na comunidade demandava-se ação positiva do adventista. Parece-me um daqueles casos da “ovelha que caiu no buraco”.