quarta-feira, março 04, 2015

O amadurecer do Universo jovem: enigma cosmológico

A galáxia A1689-zD1
Há algo muito estranho com o Universo jovem. Ao mergulharem nas entranhas do tempo e do espaço, astrônomos investigaram uma galáxia cuja luz foi emitida quando o Universo tinha “apenas” 700 milhões de anos de idade. E ela parece velha demais para aquela época remota. A descoberta foi feita combinando observações do conjunto de radiotelescópios Alma e do VLT, complexo pertencente ao ESO (Observatório Europeu do Sul). A galáxia em si, nomeada A1689-zD1, é pequena e modesta – como se esperaria de uma das mais antigas a existirem no Universo, que hoje tem cerca de 13,8 bilhões de anos. Aliás, ela só pôde ser observada porque entre ela e nós existe um aglomerado de galáxias chamado Abell 1689. A gravidade desse amontoado galáctico é tão poderosa que age como uma “lente”, magnificando a luz dos objetos que estão mais afastados. Os astrônomos estimam que seu brilho tenha sido aumentado em nove vezes, após sua luz passar em meio ao aglomerado de galáxias, antes de chegar até nós. Embora sua luminosidade e baixa massa sejam compatíveis com o que se espera de uma galáxia antiga, o que os cientistas acharam intrigante é o fato de que a quantidade de poeira presente nela é similar à observada em galáxias maduras, como a nossa Via Láctea.

O que isso quer dizer? Em essência, que o Universo atingiu um estágio maduro mais depressa do que se costumava pensar. Para produzir a poeira detectada, é preciso que várias gerações de estrelas de alta massa já tenham nascido e morrido, explodindo como supernovas. É esse processo que produz o tempero que dá graça ao cosmos. Sem elas, nós não existiríamos.

Por quê? Em essência, porque o Big Bang só levou à produção de hidrogênio (75%), hélio (25%) e uma pitadinha de lítio. E, com esses três elementos apenas, não temos muitas peças para formar coisas interessantes, como planetas terrestres ou vida. Nesse estágio inicial, nem algo bem simples, como água, poderíamos ter – faltariam os átomos de oxigênio. Em suma, o Universo nasceu bem sem graça.

Mas então as primeiras estrelas e galáxias começaram a se formar. E o que começamos a descobrir agora é que esse processo de “temperar” o Universo aconteceu com relativa rapidez, uma vez iniciado [leia também esta notícia]. A análise da galáxia A1689-zD1, publicada ontem na revista científica Nature, é uma das peças desse quebra-cabeça. Mas não é a única.

Essa noção de que o Universo amadureceu bem depressa para se tornar amigável à complexidade tem sido evidenciada em várias pesquisas desconectadas entre si, todas com resultados recentes. Na semana passada mesmo, ganhou destaque outro trabalho publicado na revista Nature que reportava sobre a descoberta de um quasar muito brilhante no Universo jovem. Já falamos deles recentemente, mas não custa lembrar que quasares são essencialmente buracos negros gigantescos que moram no coração de cada galáxia e estão num momento particularmente ativo – deglutindo matéria, por assim dizer. É o que os torna brilhantes.

O quasar descoberto por cientistas da Universidade de Pequim, na China, e da Universidade do Arizona, nos EUA, ganhou o nome SDSS J0100+2802, e sua luz partiu dele quando o Universo tinha apenas 900 milhões de anos – praticamente um contemporâneo da galáxia A1689-zD1, só um pouquinho mais novo. Com massa equivalente a 12 bilhões de sóis, ele intrigou os cientistas – como ele conseguiu juntar tanta matéria em tão pouco tempo?

Essa época crucial do Universo é chamada de “era da reionização” – um nome chique dado ao período em que as primeiras estrelas começaram a brilhar no Universo e delinear as primeiras estruturas galácticas. Ao observar objetos como esses, estamos investigando justamente a velocidade e a dinâmica dessa era crucial em que o cosmos começou a ganhar seus elementos mais pesados – coisas muito caras a nós, como carbono, enxofre, nitrogênio e oxigênio.

Uma forma alternativa de estudar a reionização é por meio da análise da radiação cósmica de fundo. E a principal fonte de dados a respeito desse “eco” do Big Bang é o satélite europeu Planck. No mês passado, a equipe responsável pela sonda publicou suas novas análises e fez uma descoberta importante: a reionização começou um pouco mais tarde do que antes se imaginava, cerca de 550 milhões de anos após o surgimento [sic] do Universo como o conhecemos. Isso é cerca de 100 milhões de anos depois do que se calculava anteriormente.

Em compensação, apesar do início tardio, a reionização avançou muito depressa. “Se muitas estrelas se formam logo de cara, elementos químicos mais pesados vão contaminar o Universo bem cedo”, disse ao Mensageiro Sideral Diego Falceta-Gonçalves, astrônomo da USP e da Universidade de St. Andrews, no Reino Unido, que ajudou a desenvolver algumas das técnicas de análise da polarização da radiação que foram aplicadas pela equipe do Planck.

O resultado disso é que, apesar do início tardio, a transição da fase desinteressante para a interessante do Universo acaba acontecendo bem depressa – o que explica a presença de galáxias evoluídas como A1689-zD1 e de buracos negros supermassivos como o SDSS J0100+2802 nos primórdios do Universo. Isso também ajuda a explicar descobertas na área de exoplanetas, com a descrição de sistemas planetários como o Kepler-444, com mais de 11 bilhões de anos de idade.

Impossível não ter a sensação de que o cosmos, de algum modo, parecia ansioso para atingir seu estágio complexo. É no mínimo curioso que as leis da física estejam precisamente reguladas para que o Universo não só atinja níveis de complexidade significativos (o que não era de modo algum garantido) como também o fizesse com relativa rapidez, menos de um bilhão de anos após seu surgimento inicial. Essa “sintonia fina” cósmica é um dos maiores mistérios da cosmologia moderna, e a verdade é que os cientistas ainda não tropeçaram numa resposta convincente que explique o fenômeno.

Uma segunda reflexão é o desdobramento do princípio copernicano a que essas revelações nos submetem. Ao deslocar a Terra do centro do Universo, Nicolau Copérnico nos divorciou da ideia de que ocupamos um lugar especial no espaço. Agora, conforme notamos que o Universo se tornou complexo e amigável à vida muito depressa, muito antes de estarmos aqui, fazemos outro deslocamento – deixamos também de estar num lugar especial na linha do tempo. Aparentemente, a julgar pelas recentes descobertas em cosmologia, astrofísica e ciência planetária, o Sol e a Terra não surgiram numa época especial do Universo. Na verdade, outros sóis e outras Terras com certeza surgiram muito antes de nós, e esses mundos já tinham todos os componentes necessários para nutrir a existência de vida.

A essa altura, a arrogância humana precisa dar lugar à reverência. Convenhamos: o Universo já era espetacular muito antes que os átomos que formam nosso corpo tivessem chegado à nebulosa que deu origem ao Sol, 4,6 bilhões de anos atrás. Eu fico a imaginar quantas entidades conscientes no Universo já chegaram a essa conclusão antes de nós...

(Mensageiro Sideral, Folha.com)

Nota: Não tenho muito mais a dizer do que está grifado no antepenúltimo parágrafo do texto acima. Mas a matéria me lembrou de outra, publicada na edição especial da Superinteressante “29 coisas que não fazem sentido” (confira aqui), e de uma frase de Winston Churchil, que diz mais ou menos o seguinte: De vez em quando algumas pessoas tropeçam na verdade, se levantam e fazem de conta que nada aconteceu. [MB]