domingo, março 01, 2015

O jornal da padaria

Simulacro da realidade
Na padaria, pego um jornal popular, desses que salvam as gráficas da inatividade, e formulo uma regra de ouro: “Quanto mais a gente distrair o trabalhador e esconder o que de fato importa, melhor para o capital.” Daí, tanta mulher de vitrine. Não de verdade, mas aquelas fabricadas na academia, na iluminação e no Photoshop (“Se a modelo é baixinha, a gente diminui o tamanho da cadeira, da mesa, do que aparece”, ensinou-me, há mais de 40 anos, o fotógrafo da Manchete. “As baixinhas ficam muito gostosas quando parecem maiores.”)

E futebol. Tem sempre um campeonato, senão a gente inventa. E um craque, senão a gente cria. (Conheci um editor que viajava pelo interior do fim do mundo; quando encontrava um garoto bom de bola, arrumava contrato de gaveta, trazia para a capital, enfiava num time qualquer; logo, na matéria do jornal, o rapaz era o maior craque. Deu duas tacadas certas e ficou rico.)

E crime. Aí é uma questão de moda e o trato com a polícia uma relação em que todos ganham, com rusgas de vez em quando. Tem temporada de assalto, de sequestro, de vigaristas... Agora, a moda é estupro. Mas sempre pinta um bom crime passional, caso que estica duas, três semanas... ouro puro! Aí, basta pegar o que sobra dos grandes jornais. (Na verdade, os crimes que ficam na memória das gentes são aqueles que revelam aspectos inéditos da sociedade ou da alma humana, do Febrônio a Aída Curi, de Claudia Lessin a Suzana Richtoffen.)

E fofocas. Os famosos: o que fazem, o que vestem, com quem andam, principalmente com quem dormem. Há famosos para todos os gostos e ninguém mais criativo do que assessor de imprensa de famoso. A televisão é um mostruário deles; pega-se carona nos humorísticos e nas novelas das seis, sete, no máximo, das nove (depois, os trabalhadores estão dormindo). No caso, interessam os famosos bem bregas. 

Nada deprimente, exceto os crimes que dão ao veículo o indispensável “efeito de real” de que fala Barthes. A vida, para esse público, já é bastante.

Um perigo nesse tipo de edição, é ir longe demais no desprezo pela inteligência dos leitores. Não se pode agredir a percepção que eles têm da realidade imediata; apenas se fala pouco dela e a toma como fato consumado. Também não se pode engrossar muito as piadas: eles levam o jornal para casa e não gostam que as crianças leiam sacanagem.

(Nilson Lage, via Facebook)