“Deus,
sendo bom, fez todas as coisas boas. De onde então vem o mal?”
Não
sou fã da revista Veja, mas a capa de
sua edição mais recente me chamou atenção. Surpreendi-me! Veja fazendo a pergunta filosófica de Santo Agostinho, na qual Deus
está envolvido? Bom, pensei, quem sabe agora vão dar um tratamento digno e
diferenciado à questão. Engano meu. A resposta-manchete dada na forma de uma
citação do poeta polonês Czeslaw Milosz – “O mal (e o bem) vem do homem” –
limitou demais o assunto. Não que o homem não esteja envolvido na problemática
do mal. O mal tem tudo a ver com a humanidade; uma grande porção dele procede
de nós. Só penso que a citação retórica e lacônica não faz jus à grandeza do
tema. Em termos de mal e de bem, o homem não é a medida de todas as coisas. Para
minha decepção, Veja não aprofundou o
assunto. Apenas aproveitou o frisson que o drama dos refugiados sírios provocou
na mídia mundial, desgastando ainda mais a imagem-símbolo do pequeno Aylan –
vítima inocente de um mundo repleto de maldade. Plus ultra!
“De
onde vem o mal?” ou “por que o mal existe?” é a pergunta secular. Desde Epicuro,
e o seu famoso trilema, chegando até nossos dias, o problema do mal (com os
seus desdobramentos teóricos e práticos) continua a atravessar-nos como uma
lança perfurante, ferindo nossas emoções e intelecto e colocando contra a
parede toda a nossa lógica, racionalidade, filosofia e teologia. Seja em que
vertente for, o mal desafia as explicações mais sofisticadas. Juan Antonio
Estrada, em A Impossível Teodiceia: a
crise da fé em Deus e o problema do mal, enfatizou o espanto e o escândalo causados
por esse intruso: “Desde o primeiro momento da sociedade e da cultura, o mal
aparece como um absurdo, como algo que se opõe à racionalização do mundo e do
homem. Nós o experimentamos como problema especulativo e existencial que tem um
substrato comum, o de ser um enigma que provoca mal-estar. O mal se apresenta à
consciência como aquilo que não deve ser. Como elemento constitutivo da
experiência humana, ele sempre foi um problema da filosofia e da religião. Não
há religião que não tenha assumido sua problematicidade, assim como também é
difícil encontrar alguma corrente filosófica que de uma forma ou de outra não
tenha pretendido elucidar seu significado e propor meios de dar-lhe um sentido,
ainda que tal sentido seja apenas teórico e não afete em nada sua realidade
fática.” Pelo lado da religião, Deus é central em qualquer debate que proponha
apresentar uma resposta convincente (não conclusiva) para o problema do mal.
Há
uma resposta adequada para a questão da existência do mal diante da suposta
existência de um Deus bondoso, onisciente, onipotente e onipresente, defendido
pelo teísmo clássico? Isso vai depender do que se entenda por “resposta”.
Começando na era moderna com os Ensaios
de Teodiceia de Leibniz, vêm se multiplicando as tentativas de se
pensar e explicar a presença do mal no mundo. O fato é que no tocante a tal
dilema ninguém escapa: nem crentes, nem descrentes, nem agnósticos. Todos estão
“comprometidos com o mal”. Assim, cada um tem a sua resposta particular.
Os
descrentes radicais costumam afirmar que “o mal é a rocha do ateísmo”, ou seja,
o mal constitui um argumento contra Deum
ou adversus Deum. Nessa “rocha”,
asseguram os ateus, todas as teodiceias e defesas apologéticas em favor do Ser
infinito são destruídas e se desfazem no pó. Nesse aspecto, considerável parte
do juízo ateísta (aparentemente cheio de razão) contra a existência de Deus vem
mesclado de incoerências lógicas e fortes sentimentos, traduzidos em rancor e
raiva dissimulados e investidos contra uma Pessoa que, na cosmovisão cética,
nem existe. Quando não, a análise ateia encontra-se recheada de ironia e
sarcasmo ao estilo voltairiano, cuja representação mais conhecida encontra-se no
Cândido, ou o otimismo. Ademais, leio:
“O ateu que formula a questão do mal em relação a Deus, simplesmente se apropria
de uma questão da Teologia Cristã e a apresenta como algo novo, de sua lavra,
algo que deve chocar ou paralisar um crente, quando isso é uma das discussões
mais antigas e profícuas da Teologia ao longo dos séculos. [...] Tentar
encurralar ou assustar um crente com a questão do mal equivale a pretender
intimidar um peixe com água limpa. A Teologia nada nessas águas há séculos! Mas
quem sabe ao ateu contemporâneo possa ser reconhecida ao menos a originalidade
nessa apropriação espúria de uma questão teológica? Será? Não, nem isso. A
verdade é que essa oposição entre a existência de Deus e do mal nada mais é do
que uma questão tormentosa que atravessa a história da humanidade. A Religião
desde sempre intuiu e constatou uma evidente tensão intelectual entre a fé em
um Deus enquanto poder criador, sustentador e salvador de todo o real de um
lado e a evidência da presença do mal no mundo de outro. As tentativas de
conciliação e compreensão desse enigma desde sempre existiram. Da mesma forma,
desde sempre aqueles que rejeitam o divino, o transcendente, se apropriam dessa
problemática como se sua fosse e como se fosse algo estranho ao estudo da fé e
o esforço de sua compreensão por via da racionalidade. O Deus judaico-cristão
(e o monoteísmo), portanto, diversamente do que também se alardeia a quatro ventos
sem qualquer base histórico-teológica, não foi a fonte dessas indagações, não
‘inventou a questão’, nem a oportunizou, mas obviamente a agudizou.” Assim, se
o mal é “a ‘rocha do ateísmo’ ela já vem sendo dissolvida há séculos pela
Teologia. Não passa de pó ou, no máximo, cascalho”.
Seria
a negação de Deus, pela via da realidade do mal, uma disfarçada e inconsciente forma
de agredi-Lo? “Lançar flechas contra um céu que se proclama vazio é uma
contradição. Agredir um ente é reconhecer, implicitamente, sua existência”,
opinou o teólogo Battista Mondin. Ou nas palavras de Albert Camus: “A revolta é
uma ascese, ainda que cega. Se o homem revoltado blasfema, o faz na esperança
de um novo Deus.” Dessa maneira, como bem ponderou o teólogo belga Adolphe
Gesché, “se o não crente acusa Deus de não existir, a proposição ‘Deus não
existe’ não é semanticamente ilógica? [...] O verdadeiro problema está noutro
lugar: entender e saber entender um grito, e um grito que, por si, tem um
direito imprescritível. O direito do homem de expressar, mesmo de maneira
chocante e além dos limites, de maneira ilógica, o escândalo do mal, gritando o
mais forte que puder. E, portanto, de chegar a pronunciar o nome de Deus correndo
risco da blasfêmia para expressar a sua recusa e a sua rejeição do mal.” Com
seu grito, estaria o ateu desenvolvendo uma teodiceia do protesto? Arremata
Gesché: “Se o homem às vezes lança seu grito a ponto de insultar a Deus, o
crente não deve ser aquele que leva toda essa questão ‘até o altar de Deus’?”
Reconheço.
Tanto para o homem cético quanto para o crente - e principalmente para este -,
o mal é um mistério profundamente perturbador. Chegou-se a dizer, mesmo com
exagero, que “o problema do mal é um peso descomunal para o teísta. É sua
grande tragédia”. Frequentemente, o homem religioso clama aos céus à semelhança
do antigo profeta: “Até quando, Senhor, clamarei eu, e Tu não me escutarás? Ou
gritarei a Ti: Violência! E não salvarás? Por que me fazes ver a iniquidade, e
a opressão? Destruição e violência estão diante de mim” (Habacuque 1:2, 3).
Clamor parecido o poeta Castro Alves registrou nos belos versos de “Vozes
d’África”: “Deus! ó Deus! Onde estás que não respondes? / Em que mundo, em
qu’estrela tu t’escondes embuçado nos céus? [...] / Onde estás, Senhor
Deus?...” O homem nunca soube lidar direito com o Deus absconditus. Somente na dimensão da fé ele consegue chegar até o
“altar de Deus” para ouvir dEle as incomuns respostas. Ou não ouvir nada:
apenas crer e confiar.
Comentaram
por aí que “o mal é um efeito indesejado do livre-arbítrio”, “uma obra da
liberdade”; ou, num universo moral, a possibilidade de tornar em ato aquilo que
existia apenas como potência. Sendo assim, o mal, originalmente, foi uma
questão de escolha, de desviar-se do padrão e do alvo. Ele nos atingiu
dramaticamente, tornando-nos também responsáveis e uma parte desse problema
cósmico. De fato, não se pode negar o potencial humano para tantas ações
maléficas ao longo da história passada, no momento presente e, infelizmente, nos
instantes futuros que ainda nos aguardam. Todavia, além de nós, alguém mais
teria alguma responsabilidade pelo mal? Numa relação de transferência de culpa,
como o fizeram Adão e Eva (Gênesis 3:11-13), os ateus diriam que, se Deus de
fato existisse, Ele seria o grande Réu, pois Sua presciência e onipotência
poderiam ter evitado a manifestação do mal no Universo. E se Deus não o evitou,
por que ainda permite tanto sofrimento injustificável na Terra? Não sejamos
apressados quanto a nossas conclusões e acusações. Não queiramos dar respostas irrefletidas
e simplistas para um enigma grandiosamente misterioso e desafiador. Este não é
um tema tranquilo, no qual se possa pensar balançando-se numa rede.
Reporto-me
a Jesus. Se existe alguém que poderia apresentar alguma resposta acerca desse enorme
dilema, seria Ele. Certa vez chegaram a Lhe perguntar: “Senhor, não semeaste Tu
no Teu campo boa semente? Como então está cheio de joio? Respondeu-lhes Ele: Um
inimigo é quem fez isso” (Mateus 13:27, 28). Ao lidar com o mal, Cristo não
entrava em discussões teóricas, mas procurava agir pelo lado do bem. Toda a Sua
breve vida neste planeta foi uma constante luta para eliminar o sofrimento e a
dor do mundo. Viveu para nos esclarecer que existe uma forma de triunfar sobre
o mal: acatar a solução que o homem tanto repudia, qual seja, o trabalho
redentor de Deus em cada membro da raça humana. Aqui, eu paro com todas as
minhas elucubrações filosóficas. Eu incorporo a resposta de Jesus, aceitando o
fato de que eu não tenho a explicação do porquê do mal, mas posso ter acesso à
história do porquê. Pelo caminho da revelação – caminho por onde a maioria não
deseja passar –, procurarei entender a narrativa do mal até a sua esperada erradicação
definitiva.
Voltando
à revista Veja: “De onde vem o mal?”
ou “por que o mal existe?” Queremos explicações ou soluções? Já não seria tempo
de mudarmos a pergunta, reformulando-a? Não seria melhor nos questionarmos: De
que forma eu consigo eliminar o mal da minha vida? Fatalmente não será por meio
de uma insatisfatória teodiceia (nos moldes leibnizianos); tampouco mediante enganosa
antropodiceia (colocando toda a responsabilidade sobre os ombros do ser humano).
Racionalizações nunca nos salvarão das garras do mal. Não sou ingênuo em pensar
que a humanidade melhorará indo na direção do bem. A história e os fatos
quotidianos testemunham de uma piora crescente da natureza humana, cada vez
mais perversa. Contudo, e apesar disso, eu acredito que o mal terá seu fim num
evento escatológico antevisto pelo teísmo cristão (Apocalipse 21:1, 4).
Enquanto aguardo esse acontecimento, não deixo de crer na transformação do mal
em bem, quando, pelo livre-arbítrio e pela graça espiritual que lhe é
concedida, o ser humano resolve trocar a escuridão pela luz. Essa possibilidade
luminosa está aberta a todos nós.
Por
curiosidade e desejo de saber, eu posso inquirir de onde vem o mal. Aylan, sua
família e os milhões de sofredores deste mundo talvez não achariam a pergunta
relevante. Para aqueles náufragos, o mal chegou pela via da humanidade ora
violenta, ora indiferente. Quem sabe, ao invés de perguntar, teriam suplicado
ao mundo e a Deus: “Livra-nos do mal!” Crentes ou incrédulos, não é isso que
todos nós queremos?
(Frank de Souza Mangabeira, membro da Igreja
Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)
Leia também: "Deus e a existência do mal"