quinta-feira, abril 07, 2016

Os zombadores dos “últimos dias”

Muito riso, pouco siso
Se a vida sem música seria um erro, como dissera Nietzsche, sem humor a vida poderia ser bem pior: uma experiência cinzenta governada por lutas e tragédias, pelo sofrimento e fardo existencial, culminando em ensimesmamento doentio. Contra os males da existência “rir é o melhor remédio”, afirmam. O humor, além de terapêutico, constitui uma visão de mundo e marca das pessoas sábias e equilibradas – característica essencial das grandes personalidades. C. S. Lewis defendia que o “humor envolve um senso de proporção e a capacidade de uma pessoa ver-se como que do exterior”. Para o escritor russo Tchékhov, “se um homem não compreende as brincadeiras – adeus! E sabem, não pode ser realmente inteligente, mesmo que seja um poço de sabedoria”. A pessoa bem-humorada é sempre bem-vinda nos círculos sociais, a ponto de se declarar: “Se não puder ser inteligente, seja engraçado.” Lembremos, porém, que humor e crítica caminham lado a lado. Quem ri nunca o faz gratuitamente; está expressando uma filosofia de vida e se posicionando perante o mundo. A forma como se ri, todavia, diz muito sobre o homem; revela-lhe o caráter, a mentalidade, os motivos, tornando mais visível o eu de cada um. Nesse sentido, só precisamos saber diferenciar entre o verdadeiro humor e sua contrafação nada desejável: a zombaria ou o escárnio depreciador, que, em nossa época, se ergue ostensivamente contra o Sagrado. 

O tempo presente é paradoxal. Constatamos profunda descrença e dúvida, mas também notamos alastrada superstição. Neste mar de forças ideológicas caóticas, em que os fundamentos existenciais vacilam, as pessoas procuram se salvar agarrando-se a filosofias ou teorias que lhes confiram a mínima explicação para a realidade. Porém o “mar” é grande, profundo e furioso; as técnicas de salvação, frágeis, e nós não sabemos “nadar” direito no abismo. Em tal abismo, o homem termina mergulhando ou no extremo racionalismo ou na irracionalidade excêntrica e mística. Alguns, receosos de se posicionar, suspendem o julgamento para cair no limbo do agnosticismo. Poucos admitem a saída cristã indicada nas Escrituras, optando e vivendo por ela, já que este caminho é por demais estreito e impopular. Nesse contexto tão confuso e multifacetado, surgem os zombadores dos “últimos dias” – uma classe que, em lugar de discernir os “sinais dos tempos”, prefere rir zombeteiramente de qualquer discurso que aponte para Deus e Sua revelação. Todos esses (ateus, agnósticos ou mesmo religiosos) cortaram qualquer vínculo com proposições de caráter teológico-bíblico, fechando as possibilidades para o conhecimento revelacional. Atacam pontos considerados essenciais para a fé cristã e indispensáveis à compreensão trans-histórica da História, entre os quais:

1. A existência de Deus e de milagres. Neste quesito, o movimento ateísta posiciona-se na vanguarda do combate à ideia de um Ser supremo, o Deus que intervém. Utilizando-se mal da ciência e revestido da filosofia cética, o aríete ateísta se lança especialmente contra a metafísica cristã, na qual está embutida a providência divina. Eventos miraculosos tidos como reais pelo cristianismo, a saber, o nascimento virginal de Jesus Cristo, Sua divindade, morte e ressurreição corporal, as profecias cumpridas na História Universal, além de outros fatores extraordinários que denotam a atuação divina nos negócios humanos, são negados e tratados como impossibilidades jamais ocorridas num universo governado pelas leis naturais. O sobrenatural é rechaçado e considerado elemento contrário ao bom-senso, à cultura moderna, ao espírito científico e racional da presente geração. “Com efeito”, asseveram grandes mentes pensantes da atualidade, “ao procurar uma coerência para a história e as condições que ela implica, o filósofo não precisará do respaldo de Deus. [...] Deus tanto é mais importante quanto mais longe se encontrar. Estranho à história, sua interferência significaria a anulação da autonomia. Da mesma forma que o Universo se abre ao exame da razão, porque ele já é razão, também a história do ser humano se abre a uma explicação racional, porque é animada de uma aspiração racional, a saber, a afirmação do homem enquanto senhor de si e administrador do mundo. [...] As verdades da razão opõem-se, por conseguinte, às verdades da teologia. [...] Os objetos de fé serão relegados ao foro íntimo, à privacidade do crente e não possuirão nenhum estatuto intelectual capaz de elevá-los à certeza metafísica.” No conjunto das explanações, não existe espaço para as “coisas do espírito” nem para o assim chamado “Deus das lacunas”, uma vez que todas as explicações podem ser dadas partindo-se da reflexão humana. Consequentemente, crer só pode ser piada! – zombam os incrédulos do neoiluminismo. Assim, as explicações últimas prescindem de Deus, sendo a confiança nEle transferida totalmente para a humanidade. No entanto, em meio ao ufanismo da razão, faz-se a pergunta: Pode a realidade ser compreendida sem Deus?

2. A Bíblia: Palavra de Deus. Entre cultos e ignorantes prevalece o pensamento de que a Bíblia é um livro igual a outro qualquer, uma produção meramente humana. Dizem que Nietzsche chegou a contestar: “Eu li a Bíblia de capa a capa. Chamar aquele livro de a palavra de Deus é um insulto a Deus. Chamar aquele livro de um guia moral é uma afronta à decência e dignidade dos povos. Chamá-lo de guia para a vida é fazer uma piada de nossa existência. E pretender que ela seja a verdade absoluta é ridicularizar e subestimar o intelecto humano.” “Classificar a Bíblia de Palavra de Deus inspirada insulta a inteligência”, protestam os céticos autointitulados brights (“brilhantes”) – os crentes no triunfo do naturalismo. Infelizmente, tais pessoas, ao desprezarem o Livro de Deus, deixam de fora um conhecimento valioso. A autoridade normativa e profética emanada das Escrituras constitui forte evidência de que Deus falou com sotaque humano às pessoas deste planeta. Além disso, o Livro encontra confirmação na História, na Arqueologia e em outros ramos do conhecimento. Os princípios exarados em suas páginas passam no teste da investigação mais minuciosa e crítica e se adaptam perfeitamente à experiência humana. Não há por que escarnecer das Escrituras, mas respeitá-la como legítima Palavra de Deus.

3. A criação do mundo em seis dias literais ex nihilo. Defender tal crença diante de uma ciência majoritariamente naturalista, na qual predomina o pensamento evolucionista, significa ser motivo de chacota nos meios intelectuais. O relato da criação é categoricamente repudiado e associado a outras mitologias primitivas, sendo posto no caldo das religiões comparadas. Quando não, ele é metaforizado, servindo apenas de mensagem simbólica de uma teologia artificial descomprometida com a exatidão do “Assim diz o Senhor”. Todavia, esforços constantes para metaforizar, alegorizar ou mitologizar a narrativa do Gênesis sobre as origens caem diante da própria evidência textual interna, que aponta para o sentido literal da criação. A literalidade, que não pode ser confundida com literalismo fundamentalista ou “letralatria”, é a base para toda a dimensão simbólica e tipológica da visão de mundo bíblica. Cada vez mais cresce o argumento de que o Universo foi planejado por um Ser de inteligência infinita, O qual corresponde de forma impressionante ao Deus da tradição judaico-cristã, merecedor da adoração de Suas criaturas. Não sei, então, por que continuam rindo da cosmovisão criacionista, se ela faz tanto sentido: ou a compreendem mal ou não percebem sua adequação aos conceitos da ciência experimental. “A ciência deixou de adorar: eis a desgraça”, lamenta o filósofo Ernest Hello; “para captar em seu princípio a catástrofe da ciência, é preciso voltar os olhos para o Éden”, conclui. 

4. A queda e a ideia de pecado. Para as mentes acostumadas ao novo vocabulário psicológico e humanista – desprovido da aura teológica –, uma queda histórica do ser humano motivada pela transgressão da Lei de Deus não encontra lugar na consciência permanentemente atormentada desta geração. Fala-se em erros, equívocos, ignorância, falta de autoconhecimento, etc., mas se desconsidera a realista proposição bíblica de que “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Romanos 3:23). Desde Freud até o pensamento psicanalítico atual, o conceito de culpa vem sendo ressignificado, expurgando-se dele qualquer relação com o termo “pecado”. Os problemas podem ser políticos, econômicos, relacionais, éticos, religiosos, extra e intrapessoais e têm as mais variadas causas. Contudo, quando se levanta a questão do pecado – condição existencial profunda e problemática –, muitos analistas torcem o nariz e riem como se isso fosse uma antiga superstição. Em nossa cultura hedonista e libertina, grande número de pessoas defende que o ser humano deve viver plenamente, sem castrações à sua liberdade, a fim de que experimente a real potência de existir. Com efeito, “nosso mundo moderno definiu Deus como um ‘complexo religioso’ e riu dos Dez Mandamentos como sendo antiquados. Então, com as risadas veio o estrondo da Guerra Mundial. Agora, um mundo amargo, encharcado de sangue, que não ri mais implora por uma saída. Só existe uma saída. Já existia antes de ser gravada nas Tábuas de Pedra. Ainda existirá quando as estrelas se desintegrarem. Os Dez Mandamentos não são regras para obedecer como um favor a Deus. Eles são os princípios fundamentais sem os quais a humanidade não consegue conviver. Não são leis. São a Lei.”

O homem, perdido na escuridão de seu interior enigmático, necessita da expiação de um Salvador que o liberte do seu estado de confusão e miséria. Entretanto, isso é demais para o coração orgulhoso! Entende-se que arrependimento, justificação e crescimento na santidade por meio da graça imerecida de Deus é linguajar religioso monótono e próprio de beatos alienados. Riem do pecado ainda que sofram os seus resultados.

5. O dilúvio universal. Este é um dos tópicos mais combatidos pelos zombadores de mentalidade uniformitarista. Embora a própria Terra demonstre em suas rochas e configuração geológica os indícios de uma catástrofe hídrica que cicatrizou toda a superfície do planeta, tais sinais são reinterpretados dentro do arcabouço teórico da geologia padrão evolucionista, a qual nega veementemente considerações de caráter sobrenatural. A história da arca de Noé aparece para os escarnecedores como mais um dos “mitos” hebraicos, originados de um povo que não tinha recursos científicos para elaborar explicações racionais. À semelhança da epopeia de Gilgamesh ou da narrativa mítica de Deucalião e Pirra, o relato bíblico do dilúvio não é levado a sério pela ciência atual; quem acredita na literalidade desse evento é considerado um crente em contos da carochinha e alvo de humor sarcástico.

6. A segunda vinda de Jesus Cristo e o juízo final. Quando, em 11 de setembro de 2001, aconteceu o atentado terrorista às Torres Gêmeas, e em 2015 o massacre ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, tive a nítida impressão (para não dizer certeza) de que vivemos em tempos cada vez mais escatológicos, à beira de momentos históricos decisivos. Possivelmente, alguns rirão dessa minha afirmativa tão apocalíptica, politicamente incorreta e “ultrapassada”. Antes de rir, porém, que tal refletir? 

Lembro-me bem, ainda adolescente, da leitura do Ragnarok (“o crepúsculo dos deuses” ou “destino dos deuses”). Aquelas cenas da mitologia nórdica – ficcionalmente impressivas –, aliadas a outros temas correlatos, não me faziam rir da imaginação do povo escandinavo. Eu questionava: haveria alguma distante verossimilhança do Ragnarok com fatos que poderiam acontecer a este planeta? Como? De que forma? Por quê? Por quem ou através de quê? O assunto não me saía da cabeça...

O discurso do “fim do mundo”, presente em muitas tradições religiosas (também nas científicas, sem o cunho da sobrenaturalidade), não é algo que as pessoas desejem ouvir ou em que desejem acreditar. Afinal, carpe diem é o lema do espírito da época, inspirada justamente no senso de finitude que pesa sobre todos nós. Pensar no fim, seja do ser humano, do mundo, do Universo e dos “deuses”, parece-nos um exercício mental desagradável demais, contrário à concepção cíclica da história. Para o mais esperançoso teólogo cristão, o mais cético e racional dos filósofos, a mais sensível e inteligente das mentes ou mesmo para o comum dos mortais, refletir sobre o fim requer coragem e um olhar “profético” e soteriológico que nem todos têm. É preciso transcender. Pois bem, ponderar sobre o fim, por causa da estranheza do assunto, também causa outro tipo de sentimento – o do escárnio no grupo peculiar dos zombadores dos “últimos dias”. Curiosamente, pela Bíblia, esses indivíduos são um sinal bastante evidente do “tempo do fim”. A respeito dos tais é dito: “Sabendo primeiro isto: que nos últimos dias virão escarnecedores, andando segundo suas próprias concupiscências, e dizendo: ‘Onde está a promessa da Sua vinda? Porque desde que os pais dormiram todas as coisas permanecem desde o princípio da criação’” (2 Pedro 3:2-4). Advertir o mundo de que acontecerá, na pós-modernidade, intervenção divina (Daniel 2; Apocalipse 14:6, 7) é algo risível e “demodê” para nossa geração despreocupada com temas religiosos. Soa como piada, humor negro. Milhões escarnecem desse acontecimento futuro predito nas páginas das Escrituras. O próprio mundo cristão encontra-se adormecido, envolto em teorias humanas e prognósticos contrários às tácitas afirmações da Bíblia acerca dos eventos finais. Conhecer, pela ótica bíblica, o futuro do mundo leva o homem crente à esperança da restauração final de todas as coisas. O zombador, ao contrário, despreza essa verdade revelada.

Nas Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, de autoria de C. S. Lewis, o diabo da ficção literária (bem diferente da realidade do ente maligno de quem os homens fazem piadas por não acreditarem em sua existência como ser pessoal) reflete: “Entre zombeteiros, é como se a piada já tivesse ocorrido; na verdade, ninguém a faz, mas qualquer assunto sério é tratado como se eles já tivessem encontrado seu lado ridículo. Quando arraigado, o hábito do escárnio constrói em torno do homem a melhor couraça que conheço contra o Inimigo [Deus]; com a vantagem de ser isento dos perigos inerentes às demais fontes de riso. Dista anos-luz da alegria; embota o intelecto em vez de o aguçar, e não gera qualquer afeição entre os que o praticam.” 

Grande parcela da sociedade humana tornou-se anárquica e zombeteira em todos os sentidos. Para os zombadores dos últimos dias, que articulam suas piadas em torno do Sagrado e ridicularizam as explicações da fé, resta a solene advertência: “Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá” (Gálatas 6:7). Ao invés de rir, pensemos seriamente nisso.

(Frank de Souza Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)