quarta-feira, março 22, 2017

A Bíblia, Ellen White, a ciência e a Terra plana

Mitos que ressurgem
Por incrível que pareça, na era dos ônibus espaciais e dos satélites orbitais, ainda há gente defendendo uma ideia que parecia superada: a de que a Terra seria um disco plano. Os defensores disso vêm sendo chamados de “terraplanistas”. Pior é que, em tempos de redes sociais, ideias conspiracionistas com sabor sensacionalista como essa se espalham como fogo em capim seco. Muitos desses ditos terraplanistas chegam a pensar que estão defendendo a Bíblia, pois supõem que o Livro Sagrado retrata uma Terra plana. Antes de mais nada, é bom que se diga que o mito da Terra plana é uma ideia antiga utilizada justamente para desacreditar o cristianismo (confira aqui). À semelhança do mito do embate de Galileu com a religião (confira aqui), o mito terraplanista deriva de uma má compreensão – neste caso, da Bíblia e da ciência. Mitos devem ser contestados com fatos (como aconteceu recentemente com o cinto de castidade), e o que faremos neste texto é justamente contestar essa ideia com base nos textos inspirados, na ciência e no bom senso.

O que diz a Bíblia?

“Ele é o que está assentado sobre o círculo da Terra, cujos moradores são para Ele como gafanhotos; é Ele o que estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda, para neles habitar” (Isaías 40:22). A palavra “círculo”, no original, é chug (חוּג) e significa somente “abóbada dos céus”. Ela se repete em citações como Jó 22:14 e Provérbios 8:27. Isaías fala simplesmente de um Deus atento ao que ocorre no mundo. Seria como se fosse uma visão da Terra a partir do espaço; o profeta não queria dar aula de astronomia, mas nem por isso ele disse uma inverdade cientifica. Trata-se de uma linguagem claramente figurativa em que Deus está assentado sobre o círculo da Terra (vista do espaço, uma esfera).

“Novamente O transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-Lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-Lhe: Tudo isto Te darei se, prostrado, me adorares” (Mateus 4:8, 9). “E o diabo, levando-O a um alto monte, mostrou-Lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-Lhe o diabo: Dar-Te-ei a Ti todo este poder e a sua glória; porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero” (Lucas 4:5, 6). Imaginar que com essa passagem a Bíblia esteja também afirmando que a Terra é plana é pura insensatez. Satanás pegou um helicóptero em Jerusalém e levou Jesus ao monte mais alto do mundo? A ida ao monte alto tem um valor mais simbólico, afinal, Jesus, como rei, estaria em posição elevada a todos os reinos.

“Ele é o que edifica as suas câmaras superiores no céu, e fundou na Terra a Sua abóbada, e o que chama as águas do mar, e as derrama sobre a Terra; o Senhor é o Seu nome” (Amós 9:6). Alguns interpretam essa passagem como se fosse a descrição de um arco sobre um disco plano, mas o texto não fala que a abóbada é o céu, e sim que Deus fundou sua abóbada na Terra. Mesmo que fizesse referência direta ao céu, não significaria que o uso da palavra “abóbada” no versículo seja referência a uma Terra plana com um arco em volta.

O que diz Ellen White?

Ver cristãos defendendo o terraplanismo já é espantoso, mas ver adventistas enveredando pelo mesmo caminho plano é ainda mais assustador! Os adventistas do sétimo dia consideram inspirados os escritos de Ellen White. Muito embora esses escritos não sejam uma segunda Bíblia, eles são muito importantes, uma vez que a autora recebeu orientação divina para escrevê-los. Quando o assunto é Terra plana, bastam algumas citações de textos de Ellen White para refutar a ideia:

“Deus qualificou o Seu povo para iluminar o mundo. Ele os dotou de faculdades por meio das quais devem eles estender a Sua obra até que ela circunde o globo” (Conselhos Sobre Saúde, 115).

“Satanás decidiu-se a fazer valer o seu direito de governar o mundo. Fora bem-sucedido ao estabelecer a idolatria em toda parte do globo, exceto na terra da Palestina” (O Grande Conflito, p. 514).

“Assim como os raios do Sol penetram até aos mais remotos recantos do globo, assim é desígnio de Deus que a luz do evangelho alcance a toda pessoa da superfície da Terra” (O Maior Discurso de Cristo, p. 42).

Em duas ocasiões Ellen White disse ter se encontrado com adventistas que defendiam a teoria da Terra plana. Ela não entrou em debates sobre o formato da Terra, mas tentou mostrar como essa questão era insignificante diante da mensagem bíblica a ser anunciada pelos adventistas: “Quando uma vez certo irmão se chegou a mim com a mensagem de que o mundo é plano, fui instruída a apresentar a comissão que Cristo deu aos discípulos: ‘Ide, ensinai todas as nações, [...] e eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos’ (Mateus 28:19, 20). Quanto a assuntos como a teoria de que o mundo é plano, Deus diz a toda alma: ‘Que te importa? Quanto a ti, segue-Me [João 21:22]. Tenho-lhes dado sua comissão. Insistam sobre as grandes verdades probantes para este tempo, não sobre assuntos que não têm relação com nossa obra’” (Obreiros Evangélicos, p. 314).

Em 1887 e em 1904, Ellen White escreveu duas cartas a respeito de adventistas que defendiam, nas palavras dela, a “teoria do mundo plano”. Os textos podem ser lidos no livro Manuscript Releases, v. 21, p. 412-415 (inédito em português).

Mas essas declarações não significam que Ellen White não tivesse uma posição definida sobre o assunto. Em 1900, ela escreveu: “Deus fez o Seu sábado para um mundo esférico; e, quando o sétimo dia chega para nós neste mundo arredondado, controlado pelo Sol, que governa o dia, em todos os países e regiões é o tempo para observar o sábado. [...] O sábado foi feito para um mundo esférico, sendo, portanto, requerida obediência das pessoas em perfeita harmonia com o mundo criado pelo Senhor" (Mensagens Escolhidas, v. 3, p. 317).

O que diz a ciência?

1. Se (a) a Terra é plana e (b) sempre é dia em alguma parte do mundo, então não existe nascer do sol nem pôr do sol, exceto, talvez, em regiões cercadas de montanhas altas. O mesmo se aplica à Lua: ela é sempre visível em alguma parte da Terra, mas desce abaixo da linha do horizonte em um momento e emerge do horizonte do lado oposto todos os dias.

2. Terraplanistas afirmam que, independentemente da altitude, sempre vemos o horizonte plano e à altura dos olhos. Isso seria impossível se a Terra fosse um disco. Só seria possível se ela fosse um plano infinito. Se é um plano infinito, então por que não descobrimos muitas terras e/ou mares além da Antártida?

3. Se a Terra fosse um disco com o Polo Norte ao centro e a Antártida nas bordas, então, se estivéssemos em um avião a uma altitude de voo de cruzeiro (ex.: 36.000 pés), poderíamos ver todos os continentes. Seria possível ver China, Estados Unidos, Europa, África e Austrália, simultaneamente, ao se sobrevoar São Paulo, por exemplo. Bastaria olhar para o lado certo.

4. Ao viajarmos de avião sobre o oceano Atlântico ou Pacífico, suficientemente afastados dos continentes, não vemos terra alguma, o que seria impossível se a Terra fosse plana.

5. Em túneis sem desvios laterais horizontais e com muitos quilômetros de extensão, não é possível ver uma entrada a partir da outra. Ao se observarem as luzes de veículos se aproximando, elas parecem emergir do solo a certa distância.

6. Em 2008, Fedor Filippovich Konyukhov demorou 102 dias para circunavegar a Antártida em um barco a vela. Se a Antártida fosse a borda de um disco de 20.000 km de raio, essa façanha seria inviável.

7. Ao fazer cálculos envolvendo curvatura da Terra, é importante não usar para grandes distâncias fórmulas que valem apenas para pequenas distâncias.

8. Ao comparar explicações da Terra plana com as da Terra esférica, é importante não misturar contextos. No modelo da Terra esférica, admite-se o fato observável diretamente de que tudo exerce força gravitacional sobre tudo, o que implica em planos equipotenciais gravitacionais, os quais definem o conceito de horizontal e vertical. Ao usar argumentos que dizem que rios precisariam subir e descer antes de chegar ao mar, no modelo da Terra redonda, essas coisas são sumariamente ignoradas.

9. Independentemente de a força gravitacional que sentimos ser causada por um aparelho que fica constantemente acelerando o disco da Terra, esse disco é feito de coisas que geram campo gravitacional, como é possível demonstrar em experimentos bem acessíveis. Isso causaria um campo gravitacional adicional que faria com que locais distantes do Polo Norte parecessem inclinados. Para irmos em direção à Antártida, sentiríamos como se estivéssemos escalando uma montanha. Além disso, o efeito dessa gravidade sobre a água faria com que as águas dos oceanos se acumulassem em torno do Polo Norte, formando uma imensa bolha, submergindo Canadá, Estados Unidos, Europa, Sibéria... Para isso não acontecer, a Terra teria que ter um formato arredondado para compensar.

10. É importante entender que a teoria atual da Terra plana é bem recente e foi inventada para ridicularizar o criacionismo.

11. Como é possível que os voos entre América do Sul e Nova Zelândia, viajando somente no hemisfério Sul, tenham aproximadamente a mesma duração que voos entre a América do Sul e a Europa?

O que diz o bom senso?

Um cristão que defende a tese da Terra plana acaba dando um grande tiro no pé. Esse mito foi criado justamente para ridicularizar os crentes (conforme está claro neste texto já mencionado, relacionado com o ótimo e esclarecedor livro Inventando a Terra Plana). Atende bem aos interesses dos inimigos da fé cristã e do criacionismo, especificamente, a ideia de que os cristãos/criacionistas seriam defensores de um argumento tão anticientífico. Como se não bastasse isso, defender teorias conspiratórias como a da Terra plana e tantas outras é pura perda de tempo. É desviar o foco para bobagens e perder de vista o essencial.

É realmente impressionante como existem pessoas que adoram propagar teorias conspiratórias sem fundamento, gastam tempo e energia com isso, enquanto negligenciam coisas infinitamente mais importantes.

Resumindo: o bom senso diz que existem coisas mais importantes para fazer do que ficar espalhando ideias infundadas que não trazem benefício algum, muito pelo contrário, atraem o deboche e o escárnio pelo motivo errado.

(Michelson Borges, Eduardo Lütz e Alex Kretzschmar)