quarta-feira, março 22, 2017

A descoberta da ciência

A teoria da evolução é científica?
A palavra “ciência” vem do latim scientia e significa “conhecimento”. Vem de scire, “conhecer”, “saber”. Está relacionada a scindere, “cortar”, “dividir”. É provável que originalmente significasse “separar uma coisa de outra para distinguir”.[1] Ao longo dos séculos, essa palavra foi usada apenas como sinônimo de conhecimento ou de conhecer, mas nos séculos 17 e 18, durante a Revolução Científica, ela passou a ter um significado mais definido e específico. Por outro lado, uma linha de investigadores prosseguiu utilizando o significado vago da palavra, de forma que uma série de diferentes tipos de investigação com resultados diversos em termos de eficiência e confiabilidade pudesse ser chamada de ciência. Especialmente a partir do século 19 isso se tem demonstrado desorientador em termos de clareza e eficiência nos meios acadêmicos. É da história desses significados e suas consequências que pretendo tratar.

A Revolução Científica – As bases do protocolo conhecido como método científico, ou seja, observação, formulação de uma hipótese, experimentação, interpretação dos resultados e conclusão, podem ser traçadas desde Aristóteles.[2-5] Portanto, a ideia de que uma investigação requer observação, dados empíricos e sistematização é muito antiga e não remete ao tempo da Revolução Científica, nos séculos 17 e 18. Então, qual foi a novidade trazida pela Revolução Científica que ocasionou essa explosão de novos conhecimentos convertidos em tecnologia, que séculos de história não foram capazes de produzir? Vejamos o que diz o pai da Ciência Moderna, Galileu Galilei:

“A [verdadeira] filosofia está escrita neste grandioso livro que está sempre aberto à nossa contemplação (refiro-me ao universo), mas que não pode ser entendido sem que primeiro se aprenda a língua, e conheçam-se os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem Matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas sem as quais é humanamente impossível entender sequer uma de suas palavras; sem estes [caracteres] fica-se a vagar por um escuro labirinto.

“Deixando de lado as sugestões, falando abertamente e tratando a Ciência como um método de demonstração e raciocínio humanamente alcançável, sustento que quanto mais isso participa da perfeição, menor será o número de proposições que prometerá ensinar, e menos ainda provará conclusivamente. Consequentemente, quanto mais perfeita é [a metodologia], menos atrativa será e menos seguidores terá.”[6]

Em outras palavras, “ciência é um método de demonstração e raciocínio baseado em Matemática de maneira coerente com o que aprendemos na natureza”, ou “ciência é o conjunto de métodos matemáticos que podemos usar coerentemente para estudar qualquer assunto”.

A noção da importância estratégica da Matemática na pesquisa científica era compartilhada por outros que contribuíram para a descoberta da ciência.

Roger Bacon (1214-1294), mesmo ainda usando a palavra “ciência” no sentido de área do conhecimento, já reconhecia a matemática como a base de todas as disciplinas: “Se em outras ciências devemos chegar à certeza sem dúvida e à verdade sem erro, compete-nos colocar os fundamentos do conhecimento na Matemática.”[7] “Há quatro grandes ciências, sem as quais as demais não podem ser conhecidas e nem um conhecimento das coisas assegurado... Dessas ciências, a porta e a chave é a Matemática... Aquele que é ignorante disso não pode entender as outras ciências nem os assuntos deste mundo.”[8]

Leonardo da Vinci (1452-1519): “A natureza é uma fonte de verdade. A experimentação nunca erra; é apenas seu julgamento que erra prometendo a si mesmo resultados não causados de seus experimentos.”[9] “Nenhuma investigação humana pode ser chamada de verdadeira ciência se não pode ser demonstrada matematicamente.”[10]

Partindo dessas ideias, Isaac Newton se propôs a usar métodos matemáticos para estudar as leis da Mecânica. Percebeu que os conhecimentos da época não eram suficientes, mas encontrou nas próprias leis do movimento as pistas para deduzir o que precisava. Descobriu assim o Cálculo Diferencial e Integral, que abriu as portas para o estudo não apenas da Mecânica, mas também das demais leis da natureza.

Convém definir, neste ponto, o significado de Matemática: deriva do grego μάθημα (máthema = ciência, conhecimento, instrução).[11] Pode-se dizer que ela é o conhecimento em si, independentemente do ser humano, incluindo toda a lógica, todas as possibilidades, todas as relações, todas as conexões, todas as estruturas. Isso significa que ela é mais do que os símbolos e os números com que estamos acostumados. Essa simbologia é apenas uma forma de apresentar algo da realidade. Qualquer metodologia que tenha correspondência com nossa realidade ou com qualquer realidade possível, necessariamente possui uma base matemática, podendo ser mais ou menos eficiente dependendo de quão exatamente representa padrões reais e do grau de correção com o qual é utilizada. A humanidade tem usado diferentes linguagens para representar estruturas matemáticas. Exemplos disso são as diferentes linguagens de programação de computadores.

O Cálculo que Newton descobriu estudando as leis da Mecânica permitiu investigações sobre calor, luz, eletricidade, magnetismo e átomos, que levaram ao desenvolvimento da Química, Biologia, Geologia, Medicina, Engenharias e tecnologias que alavancaram todas as áreas do conhecimento.[12]

Pilares da pesquisa científica – O tipo de metodologia que produziu todo o progresso que conhecemos hoje está baseado, resumidamente, nos seguintes pilares:

“1. Coleta de informações segundo critérios estabelecidos matematicamente; esse tipo de estudo pode ser chamado de experimentação; os resultados desse tipo de estudo chamam-se dados (experimentais).

“2. Estudo de dados em busca de regularidades, ou leis, segundo critérios estabelecidos pela Estatística (que é uma área da Matemática); formulação de modelos (bases relacionais formais) que sintetizam uma infinidade (literal) de dados coletados e por coletar; estabelecimento de teoremas relacionando as classes infinitas de modelos possíveis; os modelos matemáticos mais abrangentes são chamados de teorias científicas.”[13]

Existem vários importantes conceitos auxiliares:

Axioma: item de uma definição.
Lei: regularidade observada.
Hipótese: proposição a ser validada/invalidada.
Base relacional formal: é uma estrutura relacional juntamente com um objeto de estudo e um dicionário que associa a estrutura com o objeto de estudo.
Estrutura relacional: um conjunto de símbolos e relações.
Teorema: uma fórmula, proposição ou declaração em matemática ou lógica deduzida ou a ser deduzida de outras fórmulas ou proposições.[14]
Teoria científica: conjunto de leis expressas matematicamente juntamente com teoremas que demonstrem suas consequências.

O século 19 e a teoria da evolução – Enquanto a Revolução Científica prosseguia, nos séculos 17 e 18, havia uma linha de investigadores que continuava utilizando apenas observação, dados empíricos e sistematização para compreender a natureza. Esses métodos, embora úteis, não têm o poder de produzir conhecimento com o mesmo grau de eficiência e precisão que métodos matemáticos permitem. Devido a esse fato, outras áreas além da Física, como a Química e a Biologia, por exemplo, demoraram mais a ter o mesmo progresso. Por fim, os métodos e instrumentos produzidos pelo avanço da Física chegaram a essas e outras áreas, alavancando e auxiliando o desenvolvimento delas.

Na metade do século 19, Charles Darwin publicou A Origem das Espécies. A unificação do princípio darwiniano da seleção natural com a genética mendeliana, no século 20, produziu o que hoje é conhecido como Teoria da Evolução, a Síntese Evolutiva Moderna. A Teoria da Evolução, no entanto, não pode ser considerada uma teoria científica no mesmo sentido das teorias de Newton, Einstein e outros. Um conceito mais light de Ciência é necessário para que ideias mais filosóficas (organizadas, mas sem uma estrutura matemática explícita e coerente), como as de Darwin, possam ser consideradas como teorias científicas.

De fato, o legado de Darwin contribuiu para que uma linha de investigação mais ao estilo de Aristóteles prosseguisse nos meios acadêmicos lado a lado com pesquisas mais avançadas. E esse é o motivo por que tantos pesquisadores acreditam que a ciência pode errar, que o que é verdade hoje pode já não ser amanhã, por exemplo.

O legado do conceito mais light de ciência produziu um conceito confuso do que ela significa, de tal forma que ao longo de um discurso o termo vai derivando para diferentes significados. A palavra “ciência”, ao longo de uma palestra ou diálogo, pode passar por todos os seguintes significados: área do conhecimento, pesquisa que está sendo realizada, os resultados dessa pesquisa, a academia, um conjunto de cientistas, o consenso acadêmico, a opinião de um conjunto de cientistas, etc.

Unificação das diversas áreas de conhecimento – Como disse Leonardo da Vinci, “nenhuma investigação humana pode ser chamada de verdadeira ciência se não pode ser demonstrada matematicamente”.[10] A utilização de métodos matemáticos nas diferentes áreas de pesquisa possibilita uma unificação sem precedentes entre elas. Porque o uso desses métodos torna explícita a profunda interdependência entre tudo que compõe nossa realidade.

O ser humano é limitado e precisa separar o conhecimento em áreas para poder lidar com um conjunto limitado de temas de cada vez. Ao lidar com esses temas sem as ferramentas que a Matemática pode fornecer – tornando possível inclusive tratar de um número infinito de aspectos –, há a tendência de se perderem de vista a quantidade e a riqueza de conexões entre as diferentes áreas.

Se nos fosse possível contemplar de uma só vez toda a realidade, não veríamos um conjunto de áreas de conhecimento com regiões de intersecção entre elas, mas um todo contínuo e harmônico. Essas separações são artifícios de nosso raciocínio humano limitado, mas os métodos matemáticos nos permitem lidar com aquilo que nossos sentidos, nossa intuição e nosso senso comum não conseguem lidar.

Conclusões – Observação, formulação de uma hipótese, experimentação, interpretação dos resultados e conclusão, em sua essência, com menos sofisticação do que o protocolo atual, é um método que pode ser traçado desde Aristóteles. Ele não pode, portanto, ser considerado responsável pelo fantástico boom que o conhecimento da natureza e consequente desenvolvimento tecnológico teve a partir dos séculos 17 e 18. Foi a noção e o desenvolvimento de métodos matemáticos por parte de pioneiros como Galileu, Newton e outros que possibilitaram o fantástico desenvolvimento que acabou por revolucionar os modos de produção e a comunicação sobre a face do globo.

O conceito antigo e vago de ciência prosseguiu coexistindo com o novo conceito. O conceito antigo possibilitou que uma filosofia baseada em observações e racionalizações, como a Teoria da Evolução, pudesse ser elevada ao status de ciência e assim permanecer até hoje.

O uso de um conceito mais avançado de ciência, como o proposto pelos pioneiros dela, possibilitaria uma visão mais abrangente e conectada da realidade. Essa visão seria benéfica, inclusive, para aprofundar estudos sobre evolução.

(Graça Lütz é bióloga e bioquímica)

Bibliografia
Online Etymology Dictionary. http://www.etymonline.com/index.php?term=science; acessado em 18/10/2016.
History of the Scientific Method. https://explorable.com/history-of-the-scientific-method; acessado em 19/10/2016.
Stanford Encyclopedia of Philosophy; Scientific Method. http://plato.stanford.edu/entries/scientific-method/#HisRevAriMil; 13/11/2015.
Williams, L. Pearce. History of Science. https://global.britannica.com/science/history-of-science; acessado em 18/10/2016.
Faria, Caroline. Método Científico. www.infoescola.com/ciencias/metodo-cientifico/; acessado em 19/10/2016.
Galiei, Galileu. Il Saggiatore; 1624.
Shapiro, Fred R. The Yale Book of Quotations, 39; 2006. Opus Majus of Roger Bacon (1928), vol 1, 124.
Burke, R.B. The Opus Majus of Roger Bacon (1928), v. I, 116. Opus Majus [1266-1268], Part IV, distinction I, chapter I.
Vinci, Leonardo da. http://www.azquotes.com/quote/1003639; acessado em 20/10/2016.
Isidro Pereira, S.J. Dicionário Grego-Português e Português-Grego, sexta edição. Livraria Apostolado da Imprensa.
Lütz, Eduardo F. Considerações sobre Ciência, 164. Cosmovisão Criacionista Bíblica – Coletânea de artigos publicados nos periódicos da SCB; Brasília, 2015.
Merriam-Webster Dictionary. Theorem http://www.merriam-webster.com/dictionary/theorem; acessado em 20/10/2016.