segunda-feira, setembro 18, 2017

Equívocos e conceitos mal compreendidos

Na controvérsia entre evolução e criação, que muitos tendem a pensar, equivocadamente, como sendo uma controvérsia entre ciência e religião, conceitos mal compreendidos costumam confundir e prejudicar os argumentos de ambos os lados desse debate. Em vista disso, tomei algum tempo procurando esclarecer alguns desses conceitos que costumam ser obstáculos para o bom entendimento das questões envolvidas nesse tipo de discussão.

Existem alguns conceitos que parecem mal compreendidos por diferentes pessoas, independentemente do grau de instrução. É o caso do entendimento de “definição” como significando a mesma coisa que “caracterização”. Alguns confundem evolução com melhoria; outros, origem da vida com origem das espécies, ou como fazendo parte da Teoria da Evolução. É comum tomarem-se conclusões oriundas de um estudo ou de consenso acadêmico como sendo ciência, e matemática como sendo uma linguagem, algo que foi inventado pela raça humana. E é bastante generalizada a convicção de que crença no sobrenatural implica em misticismo.

1. Definição vs. caracterização. É importante estabelecer a diferença entre definição e caracterização, pois a confusão entre esses dois termos pode levar a outros equívocos na compreensão de temas importantes. É bastante comum a confusão entre definição e caracterização, mesmo em meios acadêmicos. Um exemplo é o de “definição” de vida. A maioria das definições parte de características de seres vivos encontrados no planeta Terra. O problema de procurar definir vida a partir de características (caracterização), tais como capacidade de se reproduzir, sistema químico autossustentável, etc., é que dessa forma se acaba perdendo a essência das coisas. Definição é definir, definir é delimitar, diferenciar de todo o resto.[1, 2, 3]

Existem pelo menos dois problemas que podem ocorrer quando caracterizações são assumidas como sendo definições. Um deles é o de coisas que não pertencem à definição estarem incluídas na caracterização. Exemplo: cristais se reproduzem e não são seres vivos. O outro é o de coisas que deveriam estar incluídas na definição, mas que, pela caracterização, acabam sendo excluídas. Exemplo: um ser vivo que não fosse feito de um sistema químico como o nosso, que fosse de outro planeta e funcionasse de outra forma. Definições precisam abstrair características e extrair o que delimita a natureza essencial do que está definindo. Não existe um meio mais preciso de se definir coisas do que se utilizar de definições matemáticas, pois isso permite que se tenha consciência clara do que pode ou não pode estar incluído na definição. E possibilita a exploração de conexões lógicas e consequências não triviais que frequentemente ultrapassam os domínios das abordagens qualitativas.

2. Evolução significa melhoria? Um argumento muito frequente entre criacionistas, principalmente, é o de que a teoria de Darwin, de evolução das espécies, refere-se a um progresso que envolve melhoria dos seres vivos e de que o que constatamos, na prática, é uma degradação dos seres vivos no nosso planeta.

De forma geral, partindo-se das definições, nem “progresso” nem “evolução” significam necessariamente melhoria. Progresso pode simplesmente significar um avanço em direção a um objetivo. Evolução seria um processo de mudança ao longo do tempo.[4, 5]

Não é precisa a ideia de que a Teoria da Evolução de Darwin, ou a Síntese Evolutiva Moderna (Neodarwinismo), prediz uma gradual melhoria das espécies. Ela apenas prevê mudanças graduais ao longo do tempo. Se essas mudanças permitem ao organismo estar mais adaptado ao seu ambiente, ou são neutras, serão mantidas pelo mecanismo de seleção natural. Isso significa que essa melhor adaptação ou neutralidade pode mudar com o tempo quando o ambiente se modificar.

3. Origem das espécies e origem da vida. Darwin escreveu sobre a origem das espécies, ou seja, como os diferentes organismos teriam surgido a partir de modificações lentas e graduais em organismos primitivos que teriam se originado a partir de um único ancestral comum. Ele não chegou a escrever sobre a origem da vida, embora tenha mencionado alguma coisa a respeito em correspondência pessoal.
Os estudos sobre origem da vida dizem respeito ao que teria ocorrido antes do surgimento do ancestral comum. Que tipos de processos químicos, físicos e geológicos teriam dado origem às moléculas orgânicas que compõem os atuais seres vivos.

4. Matemática é uma linguagem? Uma linguagem é um conjunto de símbolos munido de regras sintáticas que permitem combinar símbolos básicos para representar significados complexos. A matemática, por sua vez, vai muito além disso. Um dos fatos que deixa isso muito claro é que se podem usar inúmeras linguagens para representar as mesmas estruturas matemáticas. Um exemplo disso é a aritmética com os números e suas operações sendo representados por linguagens diferentes em diferentes culturas. Além disso, linguagem é apenas um dos assuntos tratados pela matemática.

Linguagens foram desenvolvidas ou concebidas por seres humanos, mas se o mesmo fosse verdade com relação à matemática, então ela seria algo mágico, já que suas estruturas podem prever coisas que acabam sendo encontradas na realidade física. Como foi o caso da descoberta de novas geometrias pelo matemático Bernhard Riemann, na década de 1850, que vieram a ser justamente as ferramentas apropriadas para Einstein na Teoria da Relatividade Geral, em 1915. E o caso do espaço de Hilbert que implicava em fenômenos surpreendentes do mundo quântico que foram confirmados experimentalmente (antimatéria, emaranhado quântico, “princípio” da exclusão de Pauli, princípio da incerteza, tunelamento quântico, etc.). Para citar apenas dois exemplos dentre muitos.

A matemática fornece métodos específicos o suficiente para prever em detalhes fenômenos previamente desconhecidos, como os exemplos citados anteriormente. Por outro lado, esses mesmos métodos nos falam de coisas além do universo. Se esses métodos falam de coisas além do universo, eles são mais gerais do que a física deste universo.

5. Ciência. Já escrevi anteriormente sobre como ocorreu a descoberta da ciência, portanto, aqui pretendo resumir alguns dos pontos já tratados.

Vimos que pioneiros da ciência como Galileu, Da Vinci e Newton, por exemplo, acreditavam que o que define ciência são métodos matemáticos. E a própria Enciclopédia Britânica reconhece que o que alavancou todas as áreas de conhecimento foi a descoberta do Cálculo por Newton.[6]

O protocolo comumente chamado de método científico (observação, formulação de uma hipótese, experimentação, interpretação dos resultados e conclusão) não foi o que ocasionou a Revolução Científica nos séculos 17 e 18, pois, de forma ainda incipiente, esse método já era utilizado por Aristóteles.

Então, embora pessoas possam empregar a palavra “ciência” para se referir ao protocolo citado acima ou a áreas do conhecimento (física, química, biologia, etc.), conclusões de cientistas, estudos sendo realizados, entre outras coisas, foram as ferramentas matemáticas utilizadas por diferentes pesquisadores que fizeram a diferença em termos da explosão de conhecimento. Em termos de definição mais útil, a de que ciência é um conjunto infinito de métodos matemáticos que podem ser utilizados para estudar qualquer assunto é a que melhor resume o que faz a diferença.

6. Crença no sobrenatural vs. misticismo. A palavra “misticismo” vem da palavra grega μυω, com o sentido de “manter em segredo ou encobrir”. E a palavra μυστικός (místico) significa segredo.[6, 7] No mundo helenístico ela se referia a rituais religiosos secretos. A experiência mística teria a ver com “intuição” ou “insight”, uma crença sem uma base sólida.[8] A crença no sobrenatural é incluída, por muitos, entre as coisas místicas. No entanto, a palavra sobrenatural significa apenas “além da natureza” ou “não sujeito a explicação de acordo com as leis naturais”.[9]

Quero ressaltar que existem coisas que estão além da natureza e que não se encaixam na não explicação de acordo com as leis naturais. Esse é exatamente o caso da matemática, por exemplo, que é mais geral do que a física deste universo (além da natureza), mas que é indicada pelas leis naturais. Neste caso, a matemática seria sobrenatural, mas não mística.

A existência do sobrenatural apenas aponta para uma realidade além do nosso universo conhecido. Por essa razão, comparar a crença em Deus com a crença em Papai Noel ou Coelhinho da Páscoa não é adequado. Assim como a pergunta: Se Deus criou tudo, quem criou Deus? Porque esse tipo de pergunta, relacionada a causas e efeitos, pressupõe uma estrutura de tempo e espaço que pertence ao domínio da física. Contudo, tempo, espaço e a nossa física surgiram, fora deles não se pode falar em causas e efeitos. Na realidade de Deus, nossa física é inadequada, mas não a matemática. É por isso que foi possível ao matemático Kurt Gödel provar seu teorema ontológico sobre a necessidade da existência de Deus. Outros matemáticos, mais recentemente, encontraram formas alternativas de confirmar esse teorema.[11,12]

Quando falamos em coisas místicas estamos nos referindo a coisas que não podem ser provadas como falsas nem verdadeiras; coisas que escapam à lógica. Com relação a Deus ocorre justamente o contrário: é a lógica (matemática) que nos mostra que Ele existe.

Por outro lado, a crença na não existência do sobrenatural leva ao misticismo ao tentarmos entender certos fatos. Por exemplo, se a Matemática não é algo transcendental, se é apenas uma construção do pensamento humano, então a constatação de que a Matemática permite prever fenômenos desconhecidos em seus detalhes finos induz à conclusão de que a mente humana tem poderes mágicos que permitem um incrível grau de acerto em adivinhações a respeito da existência de fenômenos desconhecidos e seus detalhes quantitativos finos, o que reflete um pensamento místico.

7. Conclusões. Equívocos ou má compreensão de conceitos pode complicar as discussões sobre temas relacionados à controvérsia Criacionismo x Evolucionismo.

O principal problema de se confundir caracterização com definição é o de excluirem-se coisas que deveriam estar incluídas na definição e incluirem-se coisas que deveriam estar excluídas. As caracterizações não costumam distinguir precisamente o que está sendo caracterizado de outras coisas que possuam características em comum nem prever outras coisas que partilham da mesma essência, mas não de todas as características.

O termo “evolução”, em seu uso corriqueiro, tem o sentido de melhoria, contudo, em relação à evolução das espécies, significa, resumidamente, modificações e maior ou menor adaptação ao ambiente. A expressão “origem das espécies” refere-se a esse tipo de evolução, enquanto origem da vida tem a ver com o surgimento das primeiras moléculas orgânicas que são básicas para a vida.

Matemática não pode ser considerada uma linguagem porque ela pode ser expressa por muitas linguagens diferentes com os mesmos significados. Ela é também muito mais geral do que a física (natureza) e, portanto, sobrenatural, mas não mística.

Rotineiramente pessoas usam a palavra “ciência” para se referir a muitas coisas diferentes, mas de todos esses usos o mais útil é o que implica na definição de que ciência é um conjunto infinito de métodos matemáticos que podem ser utilizados para estudar qualquer assunto. E isso porque esse tipo de definição posto em prática por pioneiros da ciência possibilitou o grande boom da Revolução Científica.

Embora seja comum acreditar-se que crença no sobrenatural e misticismo andem juntos, eles, na verdade, podem significar coisas opostas, com misticismo sendo ilógico, ao passo que algo sobrenatural como a matemática (e Deus) são essencialmente lógicos.

(Graça Lütz é bióloga e bioquímica)

Referências:
1. Diário Oficial. Definição. http://www.dicionarioinformal.com.br/defini%C3%A7%C3%A3o/; acessado em 11/09/2017
2. Dicionário Online de Português. Definir. https://www.dicio.com.br/definir/; acessado em 11/09/2017.
3. Merriam-Webster Dictionary. Definition. https://www.merriam-webster.com/dictionary/definition; acessado em 11/09/2017
4. The Free Dictionary. Progress. http://www.thefreedictionary.com/in+progress; acessado em 11/9/2017.
5. Collins Dictionary. Evolution. https://www.collinsdictionary.com/us/dictionary/english/evolution; acessado em 11/09/2017.
6. Williams, L. Pearce. History of Science. https://global.britannica.com/science/history-of-science; acessado em 18/10/2016.
7. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Mysticism. https://plato.stanford.edu/entries/mysticism/; acessado em 11/09/2017.
8. Dicionário Grego Português online. Μυστικός. http://www.etranslator.ro/pt/dicionario-grego-portugues-online.php; acessado em 11/9/2017.
9. Merriam-Webster Dictionary. Mysticism. https://www.merriam-webster.com/dictionary/mysticism; acessado em 11/9/2017.
10. Vocabulary.com. Supernatural. https://www.vocabulary.com/dictionary/supernatural; acessado em 11/9/2017.
11. Benzmuller, C., Paleo, B.W. Automating Godel’s Ontological Proof of God’s Existence with Higher-order Automated Theorem Provers. http://page.mi.fu-berlin.de/cbenzmueller/papers/C40.pdf
12. Benzmuller, C., Weber, L., Paleo, B.W. Computer-Assisted Analysis of the Anderson-H’ajek Ontological Controversy. http://page.mi.fu-berlin.de/cbenzmueller/papers/J32.pdf