sexta-feira, setembro 22, 2017

Esperança, alegria e fé em um mundo marcado por tragédias

“E eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos.” Mateus 28:20

A tragédia é a marca da condição humana. C’est la vie (é a vida) diriam os trágicos à moda grega, para os quais a existência é vista como sofrimento e castigo, um drama tecido por algo maior: o cego e impessoal Destino. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes – três grandes representantes da antiga tragédia grega – deixaram obras em que angústia, punição, conflito, vingança, desagregação e morte são as forças elementares da vida dos homens e mesmo dos deuses. Prometeu Acorrentado, Édipo Rei, Medeia, As Eumênides, Antígona são alguns exemplos literários da condição trágica que permeou, desde a antiguidade até nossa época, o pensamento de poetas, escritores e filósofos.

Sobre tragédias, o “caso Nietzsche” é interessante e problemático. O filósofo do amor fati sabendo que um tremor de terra destruíra algumas casas em Nice, não reprimiu sua “alegria”. Segundo Luc Ferry – autor de Aprender a Viver: Filosofia para os novos tempos –, diante dessa catástrofe pontual, o contentamento de Nietzsche veio acompanhado de estranha e desapiedada frustração: “Infelizmente, o desastre é menor do que o previsto. Felizmente, algum tempo depois, ele se recupera ao saber que um cataclismo arrasou a ilha de Java: ‘Duzentos mil seres aniquilados de uma só vez [diz ele ao amigo Lanzky] é magnífico! [sic!]... A destruição radical de Nice e dos nicenses é que seria necessária...’” Espantosa para nós é a reação nietzscheana perante a tragédia: reação desprovida de compaixão, moral, ética, valores, transcendência ou qualquer olhar escatológico que contemple uma solução cósmica e extramundana por meio da intervenção do Outro. De fato, nada poderíamos esperar do filósofo do martelo a não ser a “rendição heroica” ao destino fatalista, revestida de sinistra euforia.

Como expressou certo pensador, “o homem nietzscheano se compraz em cada realidade. Ele a vive vigorosa e alegremente, mesmo sob as dores mais atrozes. Mais heroico que o resignado Sísifo, o Super-homem rola a sua pedra... assobiando. O herói trágico proposto por Nietzsche é o homem dionisíaco que afirma a vida inesgotável com inalterável alegria, indo nessa afirmação até o sacrifício e aniquilamento. Mostrando-se, assim, superior ao seu destino, ele se tem por vencedor. [...] Em suma, se, para Nietzsche, o absurdo é congênito à vida, a atitude humana mais elevada só pode ser esta: assumir a tragédia da vida lucidamente (encarando-a), heroicamente (com os punhos cerrados) e ludicamente (assobiando). Esta seria, para ele, a suprema lição dos gregos, como afirma já em sua primeira obra O Nascimento da Tragédia: a vida termina em tragédia, mas o herói a enfrenta altivamente através de sua ‘vontade de potência’”.

No entanto, “sem uma escatologia transterrena, a vida seria uma procissão de ‘mortos enterrando outros mortos’ (Mt 8:22), ou seja, o mundo não passaria de um grande cemitério em que alguns são mortos-mortos e outros mortos-vivos. Visão macabra! Mas não vai nessa direção o imanentismo moderno? A resposta que lhe dão seus grandes representantes é a do herói trágico: enfrentar a aniquilação da morte ‘de viseira levantada’. Que é isso, senão pose de valentão impotente? [...] Antes, graças à esperança eterna, a vida, com todas as suas vicissitudes, fica iluminada como por uma luz de aurora. Para o homo religiosus, esta vida não é a ‘vida’, mas apenas a ‘via’ para a vida. ‘Ninguém mora na via, mas anda’”.

As tragédias persistem de século em século, configurando o mundo e a nossa forma de enxergá-lo. Diante do trágico, porém, a grandeza do homem consistiria, conforme Albert Camus, “na sua decisão de ser mais forte que a condição humana”. Pergunta-se: Somos capazes de tal fortaleza e resistência sem uma compreensão revelada acerca do que a teologia convencionou chamar de “o grande conflito” – metanarrativa na qual o bem triunfará definitivamente sobre o mal e sobre todas as formas de sofrimento? Em contraponto e antítese ao amor fati, como deve reagir e viver o cristão (que não adere ao “otimismo trágico” no sentido filosófico dessa expressão) quando se defronta com as tragédias de um mundo que soluça e chora incessantemente? A resposta é direta: com olhar profético, alegria e esperança, centrando a atenção nAquele que vem – o Filho do Homem, o Filho de Deus. Tal postura não é fácil e só pode ser adotada pelo homem de fé.

Para o homem de fé e espírito escatológico orientado pela Bíblia, o que são as tragédias globais a ocorrerem atualmente? Elas são signos ou sinais do desespero das forças do mal, mostrando que a Terra clama por uma intervenção. Quando Jesus proferiu o sermão profético no Monte das Oliveiras, procurou prender a atenção de Seus discípulos ao “sinal do Filho do Homem” (Mateus 24:30) – uma marca positiva, contrária aos sinais malignos que preencheriam o espaço histórico entre a ascensão de Cristo e Seu retorno glorioso ao planeta. Os eventos catastróficos, o desequilíbrio na natureza, os enganos religiosos, os rumores de guerra e o caos social descritos no capítulo 24 do livro de Mateus são avisos do Mestre de que viria uma insistente pregação satânica ao mundo, tentando-nos a descrer do amor de Deus e a desistir da fé e da esperança escatológica. Todavia, nesse turbilhão de forças destrutivas, Jesus não enfatiza os horrores do mundo, mas a solução divina mediante o “evangelho do reino”, o qual inclui alegria paradoxal no presente e redenção completa no porvir: “Filhos Meus de todas as épocas, não se concentrem nos sinais, mas no sinal. Vocês testemunharão muitas guerras, serão perseguidos. Verão grandes e inúmeros terremotos, as doenças proliferarão e falsos conceitos de Deus irão surgir. Tudo isso se intensificará no lapso histórico que precede o Meu retorno ao mundo. Porém, estou com vocês neste tempo confuso de angústia. Fiz a promessa de que virei outra vez; portanto, levantem a cabeça! Aprontem-se e aguardem-Me com esperançosa e ativa expectativa. No contexto das tragédias, sejam o sal e a luz deste mundo sofredor.”

Sim, vem a hora em que o evangelho eterno – a boa notícia – se espalhará pelo mundo num alto clamor, soando acima do “sermão de Satanás” e declarando que o fim é chegado: o fim do mal e do pecado. Compreendida assim, a teologia do grande conflito nos enche de fé e confiança, descortinando os bastidores da luta titânica entre poderes grandiosos e antagônicos e revelando os esforços sacrificais de Cristo para trazer redenção e paz eterna, pois “de nada nos valeria ter nascido se não fosse para sermos redimidos”. Em vista disso, os cristãos que tomam a segura palavra profética na mente e no coração, levando-a a sério e vivendo de acordo com seus ensinamentos, não são heróis trágicos no meio de uma batalha existencial. Verdadeiramente, compreendem a origem dessa guerra milenar e sofrem no transcurso dela, aguardando o seu desfecho – o Armagedom. Compreendem que “tudo no mundo está em agitação. [...] Os acontecimentos por vir projetam sua sombra diante de si. O Espírito de Deus está sendo retirado da Terra, e calamidade segue-se a calamidade em terra e mar. Há tempestades, terremotos, incêndios, inundações, homicídios de toda espécie. Quem pode ler o futuro? Onde está a segurança? Não há certeza em coisa alguma humana ou terrena”.

Em conversa por e-mail com uma amiga sofredora, expressei-me assim: “Amiga, o sofrimento requer um livramento, uma solução, um milagre: esse é o nosso desejo. Frustramo-nos, porém, porque, como regra, o aqui e agora comportam-se como carrascos de nossa condição existencial. Em face de tal realidade, nosso consolo, na maioria das vezes, restringe-se a compartilhar o eu sofredor, dando-lhe expressão à escuta de alguém sensível. Defronta-nos o medo que, tal qual a Hidra de Lerna mitológica, corta-se uma cabeça apenas para vê-la renascer em nova ameaça. A força humana sozinha nada pode, efetivamente, contra esse monstro gigantesco. Se é dessa maneira, deveríamos parar de lutar? Não! Entretanto, precisamos de ajuda. Nesse sentido, bem apropriados aos sofredores de uma dimensão finita são o exemplo e a súplica de Jesus: ‘Meu Pai, se possível, afasta de Mim este cálice; contudo, não seja como Eu quero, mas sim como Tu queres.’ Difícil orar como Jesus orou? Claro! Todavia, não há escapatória para o cristão. Necessitamos de coragem sobrenatural para aceitar a cruz, mas também de perspectiva e confiança sobrenaturais para acreditar na ressurreição logo à frente. Embora em nosso Getsêmani só vislumbremos trevas e becos sem saída, sendo massacrados pela opressão do inimigo, somos encorajados a atravessar o caminho escuro, sustentando-nos em nosso Pai, muitas vezes oculto e misterioso para a mentalidade e visão de seres humanos fragmentados por tragédias.”

No plano individual, o cristão convive com a escuridão da cruz. Porém, na noite de sua vida, ele espera o amanhecer anunciado pela promessa de uma feliz e plena existência imortal, ainda que não descarte aqui a mudança para uma “boa sorte” concedida pelos favores da Providência. O mundo é agridoce. O forte e azedo sabor das tragédias pode ser suavizado pelo melífluo amor de Deus, que tudo transforma, redime e modifica. Certamente, as tragédias farão parte de nossa contingência até a consumação dos séculos. Contudo, por mais tenazes que sejam, o fim delas já foi profeticamente determinado. Por isso, o “otimismo cristão” enxerga além dos fatos e dos acontecimentos tristes reinantes sobre a cabeça de todos nós. Em visão antecipada, ele contempla o dia quando todas as dores do mundo se dissiparão ante Aquele que pisou o solo deste mundo sofredor, experimentando em Si mesmo uma tragédia infinita.

O presente é sombrio e trágico, mas o futuro será, definitivamente, luminoso e feliz. “Está consumado!” “Está feito!”

(Frank de Souza Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)