quarta-feira, novembro 15, 2017

As coisas encobertas e as reveladas

“‘As coisas encobertas são para o Senhor nosso Deus; porém, as reveladas são para nós e para nossos filhos para sempre’ (Deuteronômio 29:29). Precisamente como Deus realizou a obra da criação, jamais Ele o revelou ao homem; a ciência humana não pode pesquisar os segredos do Altíssimo. Seu poder criador é tão incompreensível como a Sua existência. Deus permitiu que uma inundação de luz fosse derramada sobre o mundo, tanto nas ciências como nas artes; mas quando professos cientistas tratam esses assuntos de um ponto de vista meramente humano, chegarão certamente a conclusões errôneas. Pode ser inofensivo pesquisar além do que a Palavra de Deus revelou, se nossas teorias não contradizem fatos encontrados nas Escrituras; mas aqueles que deixam a Palavra de Deus e procuram explicar Suas obras criadas por meio de princípios científicos, estão vagando sem mapa nem bússola em um oceano desconhecido” (Ellen G. White, Patriarcas a Profetas, p. 72).

Em algumas ocasiões, vi o texto acima ser citado em um contexto em que se procurava desacreditar resultados de pesquisas científicas, especialmente na área de Cosmologia. No contexto original, essa citação serve de advertência à insuficiência do intelecto humano diante da grandeza de Deus e da natureza bem como a necessidade de fazermos uso da verdadeira ciência (em oposição à ciência humana) para entendermos mais profundamente tanto a natureza quanto a Bíblia.

Lido fora de contexto, esse trecho passa praticamente a ideia oposta ao que o texto como um todo nos diz em relação à verdadeira ciência. É importante dedicar algum tempo a considerar esse contexto.

Trata-se do capítulo 9 do livro Patriarcas e Profetas, de Ellen White, cujo título é “A Semana Literal”.

O capítulo inicia falando do sábado e de como ele se originou na criação da Terra e foi preservado e trazido até nós através da história bíblica. Menciona a lei dada no Sinai, que inclui o mandamento sobre o sábado. Menciona a hipótese de que cada dia da semana de Gênesis 1 seriam milhares de milhares de anos e como isso não faz sentido diante da ordem para trabalharmos seis dias e descansarmos no sétimo associada à semana da criação. Diz que essa ideia não está em conformidade com o método com que o Criador trata de Suas criaturas.

“‘Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da Sua boca.’ ‘Porque falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu” (Salmo 33:6, 9). A Bíblia não admite longas eras em que a Terra vagarosamente evoluiu do caos. De cada dia consecutivo da criação, declara o registro sagrado que consistiu de tarde e manhã, como todos os outros dias que se seguiram. No final de cada dia dá-se o resultado da obra do Criador” (p. 70).

Notemos que o assunto aqui continua sendo a criação da Terra. A autora segue dizendo que “pretendem geólogos achar prova na própria Terra de que ela é muitíssimo mais velha do que ensina o registro mosaico... a Terra foi povoada muito tempo antes da era referida no registro da criação... Tal raciocínio tem levado muitos crentes professos na Bíblia a adotar a opinião de que os dias da criação foram períodos vastos, indefinidos. Mas, fora da história bíblica, a geologia nada pode provar”.

“Há um esforço constante, feito com o fim de explicar a obra da criação como resultado de causas naturais; e o raciocínio humano é aceito mesmo pelos cristãos professos, em oposição aos claros fatos escriturísticos. Muitos há que se opõem ao estudo das profecias, especialmente as de Daniel e Apocalipse, declarando serem tão obscuras que não podemos entendê-las; contudo estas mesmas pessoas recebem avidamente as suposições dos geólogos, em contradição com o registro mosaico. Mas se aquilo que Deus revelou é tão difícil de entender, quão incoerente é aceitar meras suposições com relação àquilo que Ele não revelou!”

Note que o “esforço constante” mencionado pela autora não se refere à tentativa de entender o que Deus faz à luz das leis conhecidas, mas à tentativa de eliminar Deus do cenário, atribuindo a criação a causas naturais. Há quem confunda essas duas abordagens como se fossem uma só e a mesma. É nesse contexto que se insere o texto que mencionamos no início.

Iniciemos observando as seguintes frases: “Precisamente como Deus realizou a obra da criação, jamais Ele o revelou ao homem; a ciência humana não pode pesquisar os segredos do Altíssimo. Seu poder criador é tão incompreensível como a Sua existência.”

A que obra de criação a autora se refere? Como já vimos, o assunto é a criação da Terra (ou terraformação) em uma semana literal. O texto bíblico não diz como Deus realizou todos aqueles feitos; apenas menciona passos e algumas definições de termos como céus e terra para deixar bem claro que o contexto era local, não universal. Mas não há detalhes técnicos sobre como exatamente Deus realizou a terraformação.

“A ciência humana não pode pesquisar os segredos do Altíssimo.” Fora do contexto, essa afirmação pode nos levar a crer que jamais deveríamos tentar utilizar a ciência para estudar a criação (o criacionismo científico seria uma blasfêmia) ou muito menos a Deus. Como harmonizar isso com todas as recomendações bíblicas para estudarmos a Deus por meio da natureza, e especialmente com Romanos 1:19 e 20, que diz que o que se pode saber sobre Deus está escrito na natureza? Na verdade, a própria Ellen White esclarece o assunto em outros textos e fornece dicas no próprio capítulo que estamos discutindo. A chave está na expressão “ciência humana”.

O que ela chama de “ciência humana” é o que a maioria das pessoas hoje em dia chama simplesmente de ciência, mas que praticamente nada tem a ver com o conceito de ciência proposto pelos pioneiros da revolução científica. A chamada “ciência humana” não foi responsável pela explosão de conhecimentos dos últimos séculos, até porque ela apenas se vale de ideias que já eram utilizadas havia milênios. O que fez a diferença na revolução científica foi o uso coerente de métodos matemáticos para estudar a realidade, métodos esses aprendidos na própria realidade e representados de várias maneiras por linguagens criadas pela humanidade.

Voltando aos escritos de Ellen White, ela associa a “ciência humana” à vã filosofia e à falsamente chamada ciência. Realmente, o que vemos descrito em livros de filosofia da ciência é uma construção humana baseada em correntes filosóficas.

Em oposição à ciência humana, a autora fala da verdadeira ciência, cujo Autor é Deus: “Aos olhos dos homens, a vã filosofia e a falsamente chamada ciência, são de mais valor do que a Palavra de Deus” (Review and Herald, 8 de novembro de 1892).

“Hoje os homens declaram que os ensinos de Cristo concernentes a Deus não podem ser provados pelas coisas do mundo natural, que a natureza não está em harmonia com as escrituras do Antigo e Novo Testamentos. Não existe essa suposta falta de harmonia entre a natureza e a ciência. A Palavra do Deus do Céu não está em harmonia com a ciência humana, mas em perfeito acordo com Sua própria ciência criada” (Olhando para o Alto, 21 de setembro [Meditações Matinais, 1983]).

“Deus é o autor da ciência. As pesquisas científicas abrem ao espírito vasto campo de ideias e informações, habilitando-nos a ver Deus em Suas obras criadas. A ignorância pode tentar apoiar o ceticismo, apelando para a ciência; em vez de o sustentar, porém, a verdadeira ciência contribui com novas provas da sabedoria e do poder de Deus. Devidamente compreendidas, a ciência e a Palavra escrita concordam entre si, lançando luz uma sobre a outra. Juntas, conduzem-nos para Deus, ensinando-nos algo das sábias e benéficas leis por que Ele opera” (Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes, p. 426).

“Há poder no conhecimento de ciências de toda a espécie, e é desígnio de Deus que a ciência avançada seja ensinada em nossas escolas como preparação para a obra que há de preceder as cenas finais da história terrestre” (Fundamentos da Educação Cristã, p. 186).

“Depois da Bíblia, a natureza deve ser o nosso maior livro de texto” (Conselhos Sobre Educação, p. 171).

“Ao mesmo tempo em que a Bíblia deve ter o primeiro lugar na educação das crianças e jovens, o livro da natureza ocupa o lugar imediato em importância. As obras criadas de Deus testificam de Seu amor e poder. Ele trouxe à existência o mundo, juntamente com tudo que nele se contém” (Exaltai-O Como Criador, 22 de fevereiro [Meditações Matinais, 1992]).

Sendo que é perigoso confiar na ciência humana, e sendo que somos admoestados a ler o livro da natureza como sendo o mais importante depois da Bíblia, de que forma faremos esse estudo? Como vimos, Deus nos disponibilizou a verdadeira ciência para isso. Os mesmos catalisadores que levaram à redescoberta de ensinamentos Bíblicos no fim da Idade Média também levaram à revolução científica.

Continuemos a observar mais alguns itens do capítulo 9 de Patriarcas e Profetas:

“Céticos que leem a Bíblia com o fim de cavilar podem, mediante uma compreensão imperfeita, quer da ciência quer da revelação, pretender achar contradições entre elas; mas, corretamente entendidas, estão em perfeita harmonia.” Notemos que uma compreensão imperfeita da ciência ou da Bíblia faz parecer que há contradições entre uma e outra. De que ciência ela fala aqui? Notemos que a ciência humana é uma forma de entender as coisas (entendimento) e não faz sentido dizer que os que possuem essa forma de entendimento não a entendem. A ciência mencionada aqui, muitas vezes incompreendida mas que está em harmonia com a Bíblia, é a verdadeira (conhecimento em oposição a entendimento).

“Na Palavra de Deus surgem muitas perguntas que os mais profundos sábios jamais poderão responder. A atenção é chamada para esses assuntos, para nos mostrar, mesmo entre as coisas comuns da vida diária, quanta coisa há que mentes finitas, com toda a sua vangloriada sabedoria, jamais poderão compreender amplamente.” Isso tem acontecido em relação à verdadeira ciência também. Nos últimos 200 anos, métodos matemáticos têm revelado à humanidade detalhes que entram em conflito com a intuição comum e até com “verdades filosóficas” tidas por confiáveis durante milênios. Os testes mostraram que a intuição e aquelas “verdades filosóficas” é que estavam erradas. Se tomarmos a Mecânica Quântica como exemplo, podemos notar o quão simples ela é matematicamente, mas ao mesmo tempo quão insondável à filosofia humana ela tem-se mostrado.

Quando confundimos a ciência humana com a ciência verdadeira, tratando ambas como se fossem invenções humanas, o texto do parágrafo anterior, assim como o inicial deste artigo, nos dão a ideia de que simplesmente não devemos confiar na ciência, o que por sua vez nos induz a confiar apenas nas impressões que temos ao ler o texto Bíblico. Mas o que temos nesse capítulo é exatamente uma advertência contra confiar em impressões e intuições. A verdadeira ciência é uma caixa de ferramentas que serve tanto para o estudo da Bíblia quanto da natureza, protegendo-nos contra essa perigosa forma de pensar baseada apenas na intuição humana, em última instância.

Na sequência do capítulo, encontramos algo muito interessante e que ilustra bem o tipo de inversão de sentido que acontece quando descontextualizamos textos nessa área. Notemos os dois parágrafos a seguir:

“Contudo, homens de ciência julgam poder compreender a sabedoria de Deus, aquilo que Ele fez ou pode fazer. A ideia de que Ele é restrito pelas Suas próprias leis, prevalece largamente.” Muitos leem isso e concluem que Deus viola as próprias leis. Sendo assim, é inútil tentar utilizar leis físicas para saber mais sobre milagres ou sobre a criação. Sim, essas coisas são inacessíveis à ciência humana, mas não à verdadeira.

Os naturalistas (proponentes da ciência humana) “não creem no sobrenatural, não compreendendo as leis de Deus, ou o Seu poder infinito para executar Sua vontade por meio delas”. É interessante notar que o destaque aqui é o de que Deus tem poder infinito para executar Sua vontade por meio das leis físicas. Também é mencionado que no naturalismo não há compreensão das leis de Deus. Aliás, a totalidade das leis de Deus não é compreensível por seres finitos, pois essas leis se desdobram infinitamente. É importante notar, porém, que incompreensível não é sinônimo de ininteligível. Podemos entender cada lei, mas não temos como sequer conhecer todas, embora conheçamos seu princípio gerador.

“Muitos ensinam que a matéria possui força vital: que certas propriedades são comunicadas à matéria, e que então fica ela a agir por meio de sua própria energia inerente; e que as operações da natureza são dirigidas de acordo com leis fixas, nas quais o próprio Deus não pode interferir. Isto é ciência falsa, e não é apoiado pela Palavra de Deus. A natureza é serva de seu Criador. Deus não anula Suas leis, nem age contrariamente a elas; mas está continuamente a empregá-las como Seus instrumentos. A natureza testifica de uma inteligência, de uma presença, de uma energia ativa, que opera em suas leis e por meio das mesmas leis.”

Notemos como esse trecho combate vários erros opostos, mas igualmente perigosos: o de que as leis físicas limitam a Deus por um lado e a ideia de que, como Deus é superior às leis físicas, Ele as violaria de vez em quando.

Como mencionamos de passagem antes, essa questão é semelhante aos dois erros aparentemente opostos mas igualmente perigosos que costumam ser cometidos no contexto do texto inicial. Um deles é confiar na sabedoria humana, seja na interpretação da Bíblia, seja na interpretação da natureza. O outro é achar que a ciência é algo inadequado para estudar as coisas de Deus e a criação. Na verdade, esses dois erros são instâncias de um mesmo problema conceitual: a confiança na intuição humana; em um dos casos essa confiança é depositada nas impressões que alguns têm ao estudar a Bíblia e na ideia de que essas impressões são mais seguras do que estudos verdadeiramente científicos sobre a natureza; no outro caso, confia-se na intuição humana que, com alguma organização, passa a ser chamada (falsamente) de ciência e utilizada para contradizer a Bíblia.

“Deus é o fundamento de todas as coisas. Toda verdadeira ciência está em harmonia com Suas obras; toda verdadeira educação conduz à obediência ao Seu governo. A ciência desvenda novas maravilhas à nossa vista; faz altos voos, e explora novas profundidades; mas nada traz de suas pesquisas que esteja em conflito com a revelação divina. A ignorância pode procurar apoiar opiniões falsas a respeito de Deus apelando para a ciência; mas o livro da natureza e a Palavra escrita derramam luz um sobre o outro. Somos assim levados a adorar o Criador, e a depositar uma confiança inteligente em Sua Palavra.”

Se a verdadeira ciência nunca traz algo que esteja em conflito com a revelação divina, não faz sentido que a temamos. A advertência é contra confiar na ciência humana, não na ciência.

“Nenhuma mente finita pode compreender completamente a existência, o poder, a sabedoria, ou as obras do Ser infinito.” Compreender completamente é um pleonasmo, mas é útil para enfatizar o que está sendo explicado. Nem Deus nem Suas leis são compreensíveis, mas isso é diferente de ser inteligível. “Os homens podem estar sempre a pesquisar, sempre a aprender, e ainda há, para além, o infinito.” Se essas coisas fossem ininteligíveis, jamais aprenderíamos sobre elas.

“Aqueles que tomam a Palavra escrita como seu conselheiro encontrarão na ciência um auxílio para compreender a Deus.” Aqui, a palavra compreender é usada no sentido de entender. Então é possível entender a Deus e a ciência é um auxílio para isso, ao contrário do que parecia no texto da abertura deste artigo.

“As Suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o Seu eterno poder, como a Sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas” (Romanos 1:20).

(Eduardo Lütz é físico e engenheiro de software)