A
palavra “axioma” tem sido usada com diferentes significados, dependendo da área
do conhecimento e da época. Em Filosofia, tipicamente define-se axioma como
sendo uma verdade autoevidente ou variantes desse conceito, como algo tão
fundamental que não pode ser demonstrado logicamente. Em culturas antigas, uma
conceituação semelhante também era usada em Matemática, embora essa área não
fosse tratada com o rigor que utilizamos hoje, mas na forma de receitas
(algoritmos) para resolver problemas práticos. Essas receitas partiam de certos
pressupostos aproximados e descreviam uma série de passos para calcular algo.
Euclides resumiu conhecimentos de geometria na forma de alguns princípios, os
famosos axiomas da Geometria Euclidiana.
Nos
últimos séculos, com o conhecimento matemático, descobriram-se maneiras
poderosas e confiáveis de estudar Matemática de maneira a transcender a
capacidade do raciocínio humano desarmado. E a forma encontrada de tratar
axiomas e teoremas é muito importante nesse cenário.
De
um lado, temos a forma organizada e sistemática de entender coisas
filosoficamente, forma essa sujeita às limitações da capacidade mental humana.
Podemos comparar isso à nossa capacidade de andar a pé, correr, pular, escalar
montanhas, nadar, mergulhar. Coisas que podemos fazer com nossas habilidades físicas.
Do
outro lado, temos uma forma especial de lidar com elementos da Matemática de
maneira a refletir de perto suas respectivas propriedades definitórias na
própria linguagem usada para descrevê-los. Á primeira vista, isso consiste
apenas em usar uma particular abordagem do leque da Filosofia e aplicá-la a uma
área bastante específica e restrita, que seria a Matemática. Ao nos
aprofundarmos nessa linha, entretanto, descobrimos que essa aparente restrição
corresponde, na verdade, a uma tremenda amplificação do que podemos fazer e
conhecer de tal maneira a podermos transcender facilmente os limites que temos
em qualquer abordagem filosófica. É como passarmos a ter acesso a veículos
automotores que nos permitem andar muito mais rápido por terra, água, ar e
espaço sideral. Isso inclui o que podemos fazer filosoficamente, mas vai muito
além dessas possibilidades.
Nesse
caminho de descobertas transcendentes proporcionado pela descoberta da Ciência
como sendo um conjunto infinito de métodos matemáticos (conforme proposto por
pioneiros como Galileu), descobrimos que alguns conceitos filosóficos
utilizados por milênios eram equivocados e que outros baseavam-se em definições
ineficientes ou enganosas.
Um
dos conceitos que, no âmbito matemático, demonstra-se tanto ineficiente quanto
enganoso é a versão filosófica usual de axioma como se fosse uma verdade
autoevidente. Quem trabalha com estruturas algébricas e está acostumado a
definir entidades matemáticas e demonstrar teoremas não deverá ter grandes
dificuldades de perceber que axiomas são apenas itens de definições. Mesmo nos
casos em que se poderia abusar da linguagem e considerar um axioma como uma
verdade fundamental, ainda assim trata-se de um item de uma definição.
Procuraremos esclarecer essa questão por meio de um exemplo que ilustra como
lidamos com essas coisas em Matemática.
Definamos
o conjunto dos brasileiros como sendo o conjunto das pessoas que satisfazem os
seguintes axiomas:
1.
Possui cidadania brasileira.
2.
É do sexo masculino.
Definamos
também o conjunto das brasileiras como sendo o conjunto das pessoas que
satisfazem aos seguintes axiomas:
1.
Possui cidadania brasileira.
2.
É do sexo feminino.
Podemos
criar definições semelhantes para argentinas e argentinos.
Em
estudos rigorosos de Matemática, axiomas são sempre utilizados da forma como
ilustramos acima. Feitas as definições, utilizam-se os axiomas correspondentes
para provar teoremas sobre o que foi definido. Os axiomas podem ser usados sem
medo de que estejam errados, não por serem verdades fundamentais, mas por se
aplicarem por definição ao que foi definido por eles.
Faz
algum sentido dizer que a afirmação “é do sexo feminino” é uma verdade
autoevidente, fundamental e universal? Deveria ser óbvio que não. Os membros do
conjunto dos brasileiros não satisfazem esse axioma. O axioma é verdadeiro para
brasileiras e argentinas, mas é falso para brasileiros e argentinos. Uma lição
disso é que um mesmo axioma pode ser verdadeiro em um contexto e falso em
outro.
Além
de axiomas possuírem “região de validade” limitada, existe outro fenômeno
importante: uma mesma afirmação que é um axioma em uma definição pode ser um
teorema (algo que pode ser provado) em outra. Isso é verdade também para
postulados e princípios na pesquisa científica. Um exemplo disso é o famoso
princípio da exclusão de Pauli: duas partículas não podem ocupar o mesmo estado
quântico ao mesmo tempo. Isso é fundamental para que a Química exista. Mas
Pauli tomou isso como ponto de partida em um de seus estudos. Mais tarde, com
um melhor entendimento sobre a origem das leis do mundo quântico, passou a ser
possível deduzir esse “princípio” a partir de coisas muito mais fundamentais.
Hoje, a afirmação de Pauli deveria ser considerada um teorema aplicável a
férmions (mas não a bósons).
Em
função da forma diferente de usar palavras técnicas, é comum que filósofos
interpretem de forma inadequada descobertas na Matemática e na Física,
frequentemente atribuindo-lhes limitações que elas não possuem e perdendo de
vista os limites reais tanto da sua conclusão quanto da descoberta em si.
De
vez em quando também lemos ou ouvimos afirmações fortes como “é impossível
provar isso ou aquilo”, ou “não é possível saber sobre isso ou aquilo”, sendo
que as respectivas limitações são válidas no âmbito da Filosofia, mas de forma
alguma refletem limitações de métodos matemáticos. Um dos detalhes
interessantes desses eventos é que frequentemente há pessoas que apresentam
exemplos de coisas impossíveis de se conhecer ou provar, sendo que os exemplos
apresentados são de coisas bem conhecidas e muitas vezes já provadas, embora o
conhecimento do assunto não tenha chegado a essas pessoas.
Com
base em uma cosmovisão que precisa de alguns ajustes, pessoas fazem afirmações
categóricas que negam fatos conhecidos em meios que fogem ao seu conhecimento.
(Eduardo Lütz é físico e
engenheiro de software)