terça-feira, dezembro 12, 2017

Axiomas podem ser falsos?

A palavra “axioma” tem sido usada com diferentes significados, dependendo da área do conhecimento e da época. Em Filosofia, tipicamente define-se axioma como sendo uma verdade autoevidente ou variantes desse conceito, como algo tão fundamental que não pode ser demonstrado logicamente. Em culturas antigas, uma conceituação semelhante também era usada em Matemática, embora essa área não fosse tratada com o rigor que utilizamos hoje, mas na forma de receitas (algoritmos) para resolver problemas práticos. Essas receitas partiam de certos pressupostos aproximados e descreviam uma série de passos para calcular algo. Euclides resumiu conhecimentos de geometria na forma de alguns princípios, os famosos axiomas da Geometria Euclidiana.

Nos últimos séculos, com o conhecimento matemático, descobriram-se maneiras poderosas e confiáveis de estudar Matemática de maneira a transcender a capacidade do raciocínio humano desarmado. E a forma encontrada de tratar axiomas e teoremas é muito importante nesse cenário.

De um lado, temos a forma organizada e sistemática de entender coisas filosoficamente, forma essa sujeita às limitações da capacidade mental humana. Podemos comparar isso à nossa capacidade de andar a pé, correr, pular, escalar montanhas, nadar, mergulhar. Coisas que podemos fazer com nossas habilidades físicas.

Do outro lado, temos uma forma especial de lidar com elementos da Matemática de maneira a refletir de perto suas respectivas propriedades definitórias na própria linguagem usada para descrevê-los. Á primeira vista, isso consiste apenas em usar uma particular abordagem do leque da Filosofia e aplicá-la a uma área bastante específica e restrita, que seria a Matemática. Ao nos aprofundarmos nessa linha, entretanto, descobrimos que essa aparente restrição corresponde, na verdade, a uma tremenda amplificação do que podemos fazer e conhecer de tal maneira a podermos transcender facilmente os limites que temos em qualquer abordagem filosófica. É como passarmos a ter acesso a veículos automotores que nos permitem andar muito mais rápido por terra, água, ar e espaço sideral. Isso inclui o que podemos fazer filosoficamente, mas vai muito além dessas possibilidades.

Nesse caminho de descobertas transcendentes proporcionado pela descoberta da Ciência como sendo um conjunto infinito de métodos matemáticos (conforme proposto por pioneiros como Galileu), descobrimos que alguns conceitos filosóficos utilizados por milênios eram equivocados e que outros baseavam-se em definições ineficientes ou enganosas.

Um dos conceitos que, no âmbito matemático, demonstra-se tanto ineficiente quanto enganoso é a versão filosófica usual de axioma como se fosse uma verdade autoevidente. Quem trabalha com estruturas algébricas e está acostumado a definir entidades matemáticas e demonstrar teoremas não deverá ter grandes dificuldades de perceber que axiomas são apenas itens de definições. Mesmo nos casos em que se poderia abusar da linguagem e considerar um axioma como uma verdade fundamental, ainda assim trata-se de um item de uma definição. Procuraremos esclarecer essa questão por meio de um exemplo que ilustra como lidamos com essas coisas em Matemática.

Definamos o conjunto dos brasileiros como sendo o conjunto das pessoas que satisfazem os seguintes axiomas:

1. Possui cidadania brasileira.
2. É do sexo masculino.

Definamos também o conjunto das brasileiras como sendo o conjunto das pessoas que satisfazem aos seguintes axiomas:

1. Possui cidadania brasileira.
2. É do sexo feminino.

Podemos criar definições semelhantes para argentinas e argentinos.

Em estudos rigorosos de Matemática, axiomas são sempre utilizados da forma como ilustramos acima. Feitas as definições, utilizam-se os axiomas correspondentes para provar teoremas sobre o que foi definido. Os axiomas podem ser usados sem medo de que estejam errados, não por serem verdades fundamentais, mas por se aplicarem por definição ao que foi definido por eles.

Faz algum sentido dizer que a afirmação “é do sexo feminino” é uma verdade autoevidente, fundamental e universal? Deveria ser óbvio que não. Os membros do conjunto dos brasileiros não satisfazem esse axioma. O axioma é verdadeiro para brasileiras e argentinas, mas é falso para brasileiros e argentinos. Uma lição disso é que um mesmo axioma pode ser verdadeiro em um contexto e falso em outro.

Além de axiomas possuírem “região de validade” limitada, existe outro fenômeno importante: uma mesma afirmação que é um axioma em uma definição pode ser um teorema (algo que pode ser provado) em outra. Isso é verdade também para postulados e princípios na pesquisa científica. Um exemplo disso é o famoso princípio da exclusão de Pauli: duas partículas não podem ocupar o mesmo estado quântico ao mesmo tempo. Isso é fundamental para que a Química exista. Mas Pauli tomou isso como ponto de partida em um de seus estudos. Mais tarde, com um melhor entendimento sobre a origem das leis do mundo quântico, passou a ser possível deduzir esse “princípio” a partir de coisas muito mais fundamentais. Hoje, a afirmação de Pauli deveria ser considerada um teorema aplicável a férmions (mas não a bósons).

Em função da forma diferente de usar palavras técnicas, é comum que filósofos interpretem de forma inadequada descobertas na Matemática e na Física, frequentemente atribuindo-lhes limitações que elas não possuem e perdendo de vista os limites reais tanto da sua conclusão quanto da descoberta em si.

De vez em quando também lemos ou ouvimos afirmações fortes como “é impossível provar isso ou aquilo”, ou “não é possível saber sobre isso ou aquilo”, sendo que as respectivas limitações são válidas no âmbito da Filosofia, mas de forma alguma refletem limitações de métodos matemáticos. Um dos detalhes interessantes desses eventos é que frequentemente há pessoas que apresentam exemplos de coisas impossíveis de se conhecer ou provar, sendo que os exemplos apresentados são de coisas bem conhecidas e muitas vezes já provadas, embora o conhecimento do assunto não tenha chegado a essas pessoas.

Com base em uma cosmovisão que precisa de alguns ajustes, pessoas fazem afirmações categóricas que negam fatos conhecidos em meios que fogem ao seu conhecimento.

(Eduardo Lütz é físico e engenheiro de software)