quinta-feira, março 08, 2018

O que havia antes do Big Bang e da origem do Universo?

[O texto que segue é um comentário do astrofísico Eduardo Lütz a esta matéria publicada no portal G1 e em outros sites.] Essa matéria trata de um tema muito interessante, mas que é entendido por poucas pessoas em função da necessidade de pré-requisitos matemáticos e conhecimentos específicos para entendê-lo. Por isso mesmo, é louvável a tentativa de Tyson e Hawking de tornar alguns de seus aspectos mais acessíveis. E é um grande desafio para quem não é da área sequer comentar a entrevista. Vamos então tentar esclarecer alguns pontos que ficaram mal entendidos bem como tentar situar um pouco melhor o que Hawking explicou.

“A ciência em geral aceita a teoria do Big Bang: o momento, há cerca de 13,8 bilhões de anos, no qual uma grande explosão de luz fez com que uma densa esfera da matéria se expandisse, tornando-se cada vez mais leve e diluída, gerando um universo em expansão continua.”

Há vários problemas nessa declaração do comentarista. Um é que Ciência é uma metodologia de pesquisa e representação, não uma pessoa ou um grupo que aceita, rejeita ou diz coisas. Mas é verdade que quase toda a comunidade científica aceita o modelo do Big Bang como sendo uma excelente aproximação do que acontece com o Universo.

Outro problema é que o comentarista fala de uma explosão de luz que teria feito com que uma esfera de matéria se expandisse. Como se houvesse um pontinho de matéria altamente concentrada em algum lugar de um espaço vazio, explodisse e se expandisse em todas as direções. Essa é uma concepção falsa. O modelo do Big Bang é muito diferente disso.

O modelo original do Big Bang foi deduzido a partir de três pontos de partida: (1) uma equação que descreve o funcionamento macroscópico do espaço-tempo (equação fundamental da Relatividade Geral), (2) leis da Termodinâmica e (3) a hipótese de que o Universo é aproximadamente homogêneo, se for observado em escala suficientemente grande (o que permite até os superaglomerados gigantes de galáxias). O último ponto é interessante apenas para facilitar os cálculos, mas não é tão essencial à conclusão final, qualitativamente falando, embora faça diferença nos detalhes mais finos. O resultado são equações que dizem que o Universo iniciou extremamente denso e desde então vem se expandindo. Mas a expansão não é da matéria, mas do próprio espaço. É a expansão do espaço que induz os aglomerados de galáxias a se afastarem uns dos outros com o passar do tempo.

No modelo do Big Bang, todo o espaço já nasce preenchido. Não se trata de uma bola de matéria crescendo no espaço que estava vazio, mas do crescimento de todo o espaço. Não há regiões vazias e não há uma esfera que cresce.

Outro detalhe interessante é que, tecnicamente, Big Bang não é o nome de uma explosão que teria servido como nascimento do Universo, mas um nome pejorativo dado a um modelo (sistema de equações) que descreve como o espaço cresce com o tempo. Mesmo que não existisse matéria no Universo, o espaço ainda sofreria expansão progressiva de acordo com a equação da Relatividade Geral. É dessa expansão que o modelo trata, não do que acontece com a matéria.

Outro ponto importante é que o modelo vale a partir do momento em que existe o tempo como o conhecemos, o tempo clássico (em contraste com tempo quântico). Esse tempo clássico tem um limite inicial, o qual dá sentido atribuir-se uma idade ao Universo. É importante ficar claro que a idade do Universo é a idade do próprio tempo. Por isso não faz sentido falar-se em “antes” do nascimento do Universo.

Algo que também precisa ser levado em conta é a questão da lei da conservação de energia. Essa lei é consequência de uma simetria do Universo em relação ao tempo. As regras que valem hoje, valem também amanhã. De acordo com um teorema famoso (Nöther), isso implica na lei de conservação de energia. Se o Universo é um sistema isolado, a quantidade de energia (e de massa, portanto) que existe hoje é a mesma que existia há um bilhão de anos. Mas o Universo nem sempre foi assim. Por ocasião do nascimento do tempo, essa e outras simetrias não existem. Existe uma espécie de recíproca ao teorema de Nöther que nos diz que o nascimento do tempo induz criação de energia, a qual excita o espaço-tempo e produz partículas. Esse fenômeno da excitação do vácuo com produção de partículas é bem corriqueiro em laboratórios de altas energias. Mas isso nos diz algo importante: não há por que preocupar-se com uma singularidade inicial na densidade do Universo, pois o espaço pode inclusive ter iniciado vazio mas ter sido excitado pela criação de energia durante a estabilização do tempo clássico. De qualquer forma, o modelo do Big Bang só vale após a estabilização, em princípio.

Como se deu esse processo e a partir de quê? Questões como essa estão ativamente sendo exploradas na área da Cosmologia Quântica. Hipóteses são levantadas e suas consequências são estudadas matematicamente a fim de se verificar se são consistentes internamente e se refletem bem o que observamos na realidade. É nessa linha que precisamos entender o que Hawking diz.

“Eu adoto o enfoque euclidiano (tridimensional) à gravidade quântica para descrever o início do Universo, pelo qual o tempo real e ordinário é substituído pelo tempo imaginário, que se comporta como uma quarta dimensão do espaço.”

“Na interpretação euclidiana, a história do Universo no tempo imaginário é uma superfície curva em quarta dimensão, como a superfície da Terra, mas com dimensões adicionais.”

Aqui, Hawking se refere a uma das linhas de pesquisa que existem em Cosmologia Quântica. Quando ele fala em tempo imaginário não se refere a um tempo da imaginação, mas à componente imaginária dos números complexos, que é algo bem “real” (em sentido coloquial) e nada tem a ver com imaginação. Tempo e espaço são coisas essencialmente da mesma natureza, diferindo apenas por um sinal em uma fórmula que representa as propriedades geométricas do espaço-tempo. Essa diferença de sinal é tal que nos permite afirmar que tempo imaginário é espaço e espaço imaginário é tempo. Hawking trabalha com uma hipótese que implica em que, se pudéssemos voltar no tempo até o nascimento do Universo, não conseguiríamos atingir aquele instante, pois o tempo tenderia a transformar-se em uma dimensão de espaço curvo e acabaríamos sendo desviados de nossa jornada sem nunca atingir o instante do nascimento do Universo. É como viajar em direção ao Polo Sul e, a certa altura, descobrir que estamos voltando para o Norte, pois não podemos ir mais ao sul do que o Polo Sul. Por isso Hawking diz que falar-se em “antes do Big Bang” equivale a falar-se em “ao sul do Polo Sul”.

(Eduardo Lütz é físico e engenheiro de software)