segunda-feira, setembro 24, 2018

Em face da morte: no abismo do nada ou nos braços de Deus?

Conta-se que “no início de setembro de 1869, Leon Tolstoi escreveu uma carta à esposa Sonya, que começava assim: ‘Uma coisa extraordinária me aconteceu em Arzamas. Eram duas e meia da manhã [...]. De repente, fui tomado de um desespero, um medo, um terror tal que nunca tinha conhecido antes. Depois lhe contarei os detalhes.’” O filósofo Kerry Walters, comentando esse estranho episódio, relata: “Quando passou sua noite terrível em Arzamas, Tolstoi tinha quarenta e poucos anos, excelente forma física e era marido e pai feliz. Era rico e aclamado em toda a Europa, como um dos maiores escritores de seu tempo. Além disso, acabara de dar os últimos retoques em sua obra-prima, Guerra e Paz. Estava no auge da vida. Tolstoi decidiu dar-se umas férias, viajando centenas de quilômetros até uma propriedade que estava interessado em comprar. A caminho, no meio da estepe russa, parou para passar a noite em uma tosca estalagem no vilarejo isolado de Arzamas. Jantou e se retirou para o quarto, completamente em paz consigo mesmo e com o mundo. Mas, nas horas escuras antes do amanhecer, Tolstoi acordou em pânico, com a certeza de que havia uma presença sinistra no quarto com ele. Tentando se acalmar, murmurou: ‘Isto é ridículo [...]. Do que estou com medo?’ Então ouviu uma resposta: ‘De mim’, respondeu a Morte. ‘Estou aqui.’”

O próprio Tolstoi narrou posteriormente que “um tremor frio percorreu-me a espinha. Sim, a Morte. Ela virá, já está aqui, embora nada tenha a ver comigo agora [...]. Todo o meu ser padecia com a necessidade de viver, o direito de viver e, no mesmo instante, senti a morte em ação. E foi horrível ser partido por dentro. Tentei afastar meu terror. Achei um toco de vela em um cadelabro de bronze e o acendi. A chama avermelhada, a vela mais curta que o castiçal, tudo me dizia a mesma coisa: não há nada na vida, não existe nada a não ser a morte e a morte não deveria existir!” Sobre a experiência esquisita e apavorante do escritor russo, Kerry Walters conclui: “Tolstoi iniciou a viagem de volta para casa completamente mudado. Essa horrível noite de pânico da morte no fim do verão de 1869 marcou-o para o resto da vida. O conto de Tolstoi ‘A morte de Ivan Ilych’, um dos retratos ficcionais mais absorventes e autênticos do processo de morrer, surgiu dessa experiência”.

Certa vez me perguntaram se eu tinha medo de morrer. Respondi que não gostaria de morrer; por isso, há dentro de mim o receio da morte. Tal como Tolstoi, eu só poderia encará-la com amedrontamento. No entanto, em maior ou menor grau, embora o medo da morte seja um sentimento universalmente experimentado, existiria a possibilidade de a “indesejada das gentes” ser enfrentada com certa coragem e até mesmo com esperança? Ou seria muita pretensão só cabível na ficção poética de Manuel Bandeira?

“Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável), / Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: / — Alô, iniludível! / O meu dia foi bom, pode a noite descer. / (A noite com seus sortilégios.) / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar.”

Quem não se lembra daquele ente amado pelo qual são derramadas lágrimas de saudade? Eu mesmo já perdi para a morte – recentemente até – algumas pessoas preciosas. A consciência da perda (saber que meus queridos passaram para a inexistência antes de mim) aumentou ainda mais minhas reflexões acerca do processo de morrer, o qual já começa com o nascimento. Pois, diferentemente dos animais, o homem morre e sabe que morre. Esse conhecimento instiga seu temor e curiosidade a ponto de questionar: “O que acontecerá comigo quando eu me for? Desaparecerei para sempre ou haverá alguma forma de sobrevivência do meu eu?”

Constitui a vida uma trajetória para o nada, a completa dissolução a ponto de virarmos “poeira das estrelas”? Ou morrer significa a “passagem” para um suposto mundo pós-morte, de acordo com algumas crenças religiosas? Morrendo, entramos de fato na extinção total ou passamos para outro estado de “vida”? São ideias antagônicas apresentadas à humanidade, as quais nos desafiam a investigar a natureza da morte e a buscar um meio de escapar dela.

Comecemos pela proposta niilista. Livros como Nos Cumes do Desespero (1932), Breviário de Decomposição (1949), A Tentação de Existir (1956) e Do Inconveniente de Ter Nascido (1973), todos do filósofo romeno Emil Cioran, exalam um pathos nauseante como se quisessem mostrar que a vida é mero acidente, sendo a morte a regra inexorável da existência, que sempre existiu e sempre existirá. Tudo morre e morrerá. Diz Cioran: “É porque ela não repousa sobre nada, porque carece até mesmo da sombra de um argumento que perseveramos na vida. A morte é demasiado exata; todas as razões encontram-se de seu lado. Misteriosa para nossos instintos, delineia-se, ante nossa reflexão, límpida, sem prestígios e sem os falsos atrativos do desconhecido.” Por outro lado, “com efeito, se o homem vem do nada para, no fim, retornar ao nada, por que, então, não ficou no nada de vez? Seria a parábola da vida um desvio breve, inútil e absurdo? É o que exprime a inscrição de um epitáfio romano antigo: In nihil ab nihilo quam citius recidimus (‘Quão rapidamente caímos do nada para o nada’)”. Para os mortalistas modernos, “os homens não passam de futuros mortos”, ou no verso pessimista de Fernando Pessoa, “cadáveres adiados que procriam”.

Na obra O Livro do Sentido: Crise e busca de sentido hoje (volume I), o teólogo católico Clodovis Boff enuncia as raízes ontológicas da vontade de viver. Em outra perspectiva, a da esperança firmada no Transcendente, ele expõe convicção contrária ao pensamento de Emil Cioran: “Se o sentimento de finitude e, portanto, de insegurança e angústia é elementar, especialmente em relação à morte, não constitui, contudo, o stimmung primeiro e mais profundo, como querem as atuais filosofias pessimistas. [...] A disposição mais originária do ser humano é a da criaturalidade, esse sentimento positivo e maravilhoso de viver, que é o sorver a vida em sua própria fonte criadora. Ora, é aí que se encontra a origem última da ‘vontade de viver’, e de viver cada vez mais. Portanto, a disposição existencial de estar voltado para a vida é mais radical do que a de estar voltado para a morte. O apetite de viver é mais arcaico e mais poderoso do que o de morrer. A pulsão de morte tem raízes psicológicas e mesmo existenciais, mas só a pulsão de vida tem raízes verdadeiramente ontológicas. [...] O Homo religiosus, por sentir a existência como um dom do alto, vive a experiência de finitude não só de modo conformado, mas na gratidão, na confiança e na coragem. Como finito, o homem sente-se ‘dado’, e dado por Alguém. [...] Exclama então: ‘Como é maravilhoso existir, quando se poderia não ter vindo à existência. E se existo, não precisando existir, é porque existo de graça e por graça. Gozo de uma vida que me é dada, sem tê-la em absoluto merecido.’ [...] Portanto, a experiência exultante da criaturalidade, a experiência de ser criado, propicia afirmar-se diante de um mundo precário e perigoso a partir da vinculação ontológica com a fonte de tudo.” 

Por mais desalentador que seja, eu tenho de concordar com o pensamento niilista num único aspecto: ao morrer, o homem adentra o reino do esquecimento e da inexistência completa. Morte é morte mesmo, em que tudo se desfaz e nada sobrevive. Contudo, discordo do espírito absoluto do niilismo, porque acredito no triunfo da vida mediante a esperança escatológica. O que isso significa? Partindo do pressuposto bíblico, assim como a vida surgiu por intervenção sobrenatural, quando, no princípio, a Terra “sem forma e vazia” (em estado caótico e morta, por assim dizer) foi organizada e embelezada por Deus, semelhantemente esse mesmo Ser intervirá na situação trágica atual do planeta para trazer de volta aquela condição de existência original da qual a morte não fazia parte. Essa fé no ato divino de recriação, que o ateu niilista considera utopia e consolo enganoso, para o crente é sólida certeza baseada na promessa da ressurreição e restauração total de todas as coisas, consoante a revelação cristã (1 Coríntios 15).

Voltemo-nos agora para outra compreensão radical acerca da morte, defendida pelas correntes religiosas que tomam os termos “espírito” e “alma” como entidades conscientes que sobrevivem ao desfazimento do corpo. Alicerçado sobre a crença equivocada de que o homem é inerentemente imortal, o espiritualismo, em todas as suas vertentes, apregoa o seguinte: “Morrer não é morrer”, mas entrar num plano alternativo de “existência”.  À primeira vista, tal fé parece manter certo ponto de contato com a máxima do químico francês Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.” Logo, a morte seria apenas um tipo de transição, e o corpo físico mero invólucro da alma que nunca perece. Essa ideia persuasiva, que vem desde a antiguidade, herdada da mentalidade grega e incorporada a crenças cristãs contemporâneas, tornou-se a “esperança” de grande parte da humanidade não conformada com o aniquilamento do ser. Entretanto, a concepção espiritualista é totalmente estranha e antagônica ao pensamento judaico-cristão pautado nas Escrituras, uma vez que na antropologia bíblica o homem, ser vivente, não tem uma alma, ele é uma alma que morre. Portanto, a dicotomia separatista espírito/corpo encontra no testemunho bíblico seu mais forte oponente. Nesse aspecto, o espiritualismo constitui um engano religioso de primeira linha, sustentado na grande mentira dita à mulher no Éden: “Certamente não morrereis” (Gênesis 3:4).

Confrontados com o ensinamento bíblico, tanto o niilismo, que nos empurra para o nada absoluto, quanto o dogma espiritualista, que não reconhece a natureza essencialmente mortal do ser humano, apresentam-se como propostas poderosas e cativantes, mas são profundas distorções da verdade no plano filosófico e religioso. O primeiro, com seu olhar extremamente pessimista, contempla a precariedade humana e as tragédias do mundo e deduz que a vida, imersa no escuro, será desfeita no nada total; já o segundo – sendo uma forma elaborada de negação da morte – assume feição enganosa ao aproveitar-se do nosso desejo de imortalidade e da intuição elementar e legítima de que não fomos criados para cair definitivamente no esquecimento, já que “Deus pôs no coração do homem o anseio pela eternidade” (Eclesiastes 3:11). Nesse caso, o espiritualismo coloca uma máscara na face da morte, escondendo a fealdade dela por meio da contrafação. A “solução” advinda desse sistema religioso, embora atraente para muitos, é fábula na forma de doutrina que, no fim, acabará decepcionando quem nela acredita.

Retomando a experiência de Tolstoi, reflete Kerry Walters: “Muitos de nós tivemos nossa própria noite escura de Arzamas, na qual fomos atingidos no estômago pela percepção de que um dia a morte vai nos aniquilar completamente, que o mundo vai continuar e nós não vamos. Nesses momentos de desorientação, não adianta apelar ao antigo argumento de Epicuro, de que ‘onde a morte está eu não estou e onde eu estou a morte não está: então, por que temer a morte?’” Penso eu que só temos condição de não temê-la, escapando de sua soberania, por meio da fé bíblica – “uma afirmação triunfante da vida” –, na qual vislumbramos tanto a explicação do enigma quanto a saída final desse cativeiro. Dessa forma, só existe uma proposta – nem fatalista nem ilusória – capaz de nos trazer a solução desejada: o drama histórico da crucifixão de Cristo, cujo significado assume proporções que transcendem as fronteiras do nosso mundo para repercutir por todo o Universo.

Na experiência do “bom ladrão”, naquela tarde de sexta-feira crucial, a morte defrontou-se com a esperança última, perdendo a supremacia ontológica. Em seu momento decisivo, nem o niilismo nem o enganoso consolo espiritualista de vida pós-morte ofuscaram a confiança do homem moribundo na Pessoa divina de Jesus. Seu olhar encontrara a Verdade, o Doador da vida que também estava morrendo pelos pecados dos seres humanos, segundo as Escrituras. Por meio da fé, o pobre mortal teve a garantia de voltar a viver não naquele mesmo dia, mas na grande e futura “manhã da ressurreição”. Apostando numa existência eterna, o ladrão arrependido se lança nos braços de Deus com a súplica final: “Jesus, lembra-Te de mim, quando entrares no Teu reino.” A resposta veio imediata: “Em verdade te digo hoje: estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:42, 43).

Diante da “ameaça do não ser”, serão lembrados por Deus os mortais deste planeta? Se a morte não deveria existir, mas entrou intrusamente em nosso mundo, governando com mão de ferro a vida, então a esperança da raça humana é estar guardada na lembrança de Deus. Seja qual for o momento – quando tudo vai bem ou quando somos assombrados pelo espectro da morte –, cada pessoa precisa suplicar a Jesus por existência eterna. Ele, que desceu à sepultura, mas, saindo dela, afirmou triunfantemente “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11:25), não deixará de ouvir o pedido daqueles cuja escolha em segui-Lo pode se dar mesmo nos momentos derradeiros de vida.

Todos os que desceram à sepultura, “dormindo em Jesus”, levaram consigo a promessa divina de que serão vitoriosos sobre a morte para usufruir vida sem fim ao lado do Criador. Eles partiram apossando-se das palavras ditas por Cristo ao suplicante na cruz: “Estarás comigo no paraíso.” Vivendo ou morrendo, que a oração do “bom ladrão” seja também a nossa: “Senhor, lembra-Te de mim!”

Frank de Souza Mangabeira