segunda-feira, setembro 17, 2018

Interpretação literalista e o surgimento da ciência moderna


Por muitos séculos o método mais popular empregado por intérpretes da Bíblia era o alegórico. No livro Tratado sobre os Princípios, publicado por Orígenes (185-253 d.C.), é desenvolvida uma teoria hermenêutica advogando que todo texto bíblico possui três sentidos: o literal, o moral e o alegórico, sendo que o último deveria ser o mais almejado por intérpretes cristãos. Assim, objetos, animais, lugares ou pessoas relatadas na Bíblia representam verdades espirituais além delas mesmas. O conhecimento da natureza era estimulado pela Igreja na medida em que existissem similitudes entre a Bíblia e o mundo natural. Os fenômenos naturais que não são mencionados na Bíblia recebiam pouco interesse. Por esses motivos, a ciência medieval não era empírica como nos dias de hoje. Os “cientistas” – melhor dizendo, os filósofos naturais – daquela época realizavam suas pesquisas nas bibliotecas de suas universidades. Quando se queria saber algo sobre oceanos, as espécies de plantas ou as estrelas, era para os livros de Aristóteles ou Platão que os especialistas recorriam. Ciência era entendida como uma atividade de “preservação e transmissão” do conhecimento obtido por autoridades passadas.

Com o advento do protestantismo, o método de interpretação alegórica proposto por Orígenes foi abandonado. Lutero, ao propor uma leitura literal do texto bíblico, rompeu com séculos de interpretação alegórica e passou a defender uma hermenêutica literalista da Bíblia. Para Lutero e muitos protestantes, o que importava era o sentido óbvio que brota do texto. Portanto, ao contrário da hermenêutica medieval, o sentido literal das palavras encontradas na Bíblia se tornou o alvo principal de exegetas protestantes.

À semelhança de muitas outras áreas, as ciências foram especialmente afetadas pelas mudanças hermenêuticas propostas por Lutero. Sua abordagem literalista do texto bíblico mudou a forma como cientistas interpretavam fenômenos naturais. A migração de uma exegese alegórica para uma literal permitiu que estudiosos olhassem para o texto e, consequentemente, para a natureza, não como algo simbólico, mas como entidades concretas, possuidoras de valor e significado próprio. A insistência protestante de que o sentido óbvio das coisas fosse adotado contribuiu para que a sociedade procurasse maneiras “científicas” de explicar e de encontrar utilidades práticas para os diferentes fenômenos naturais observados.

De maneira especial, a leitura literalista do livro de Gênesis mudou a forma de se relacionar com o mundo natural. Uma vez que a Bíblia foi expurgada de todo misticismo e mistério que lhes foram conferidos por intérpretes medievais, os eventos, as pessoas e os lugares relatados na Bíblia passaram a ser vistos como reais e históricos. As referências à criação, ao jardim do Éden, à queda de Adão e Eva e ao dilúvio, que em tempos medievais estavam carregados de significados alegóricos e teológicos, passaram a ser tratados como literais, atraindo esforços de curiosos para identificar a verdadeira localização desses lugares e eventos.

Como forma de redenção, os cientistas protestantes passaram a ver na empreita científica uma forma de restaurar a humanidade à sua condição original. Essa restauração do ser humano (e da criação, por consequência) deveria se dar em duas frentes. Na primeira, a mente humana restauraria todas as coisas à sua unidade original pelo conhecimento do mundo natural. Na segunda, o ser humano assumiria o controle da natureza e subjugaria todo o domínio natural, retomando sua posição como vice-regente de Deus na Terra. Ao conhecer seus mistérios, o ser humano se tornaria como Adão – mestre da criação.

Em suma, além de muitos outros fatores, a forma como o cristianismo interpretou o texto sagrado teve uma influência direta na forma como cientistas passaram a interpretar os fenômenos naturais. O protestantismo contribuiu com o surgimento das ciências modernas não somente oferecendo um ambiente favorável à realização da atividade científica, mas fornecendo as ferramentas interpretativas para estudarmos a natureza. A partir do momento em que o cristianismo começou a adotar uma leitura literalista, a ciência foi capaz de olhar para a natureza com outros olhos e buscar o sentido óbvio dos processos e objetos do mundo natural. É uma ironia pensar que, em nossos dias, o literalismo hermenêutico está sendo acusado de obstruir o avanço científico e as relações entre a ciência e a religião. Entretanto, quando estudamos a história do relacionamento entre religião e ciência, percebemos que a hermenêutica literalista foi exatamente o fator que forneceu as lentes interpretativas para a revolução científica e o surgimento das ciências modernas.

(Glauber Araújo é editor na Casa Publicadora Brasileira, bacharel em Teologia e mestre em Ciências da Religião)

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