segunda-feira, outubro 29, 2018

A sensação escatológica


Escatologia é uma palavra de origem grega, peculiar ao vocabulário teológico. Ela diz respeito ao estudo dos eventos finais relacionados à história da Terra e do gênero humano. Marcada por forte semântica de sobrenaturalidade, a escatologia, embora negada e combatida pelo racionalismo, faz-se sentir de forma universal como aura misteriosa a circundar o mundo. 

Pressente-se um intenso “clima de fim” envolvendo os sentimentos, os pensamentos e os discursos (políticos, religiosos, científicos, filosóficos, etc.) da sociedade em geral. Estamos tomados por algo que eu chamo de “sensação escatológica”: certa intuição de insegurança, instabilidade e incerteza que se apossou de quase todos. É como se os acontecimentos da vida, na esfera individual e coletiva, rumassem descontroladamente para o precipício, sendo conduzidos até à consumação. O que está acontecendo?

Desde tempos muito remotos, formas de apocalipse sempre se fizeram presentes no inconsciente coletivo da humanidade. A sensação escatológica perpassou crenças, sistemas e ideologias, sem nunca nos abandonar. No mundo mítico, por exemplo, com raras exceções, a consciência era permanentemente lembrada acerca do “fim do mundo”, do Ragnarök ou juízo final em que o céu e a Terra passariam por perturbações catastróficas, a fim de darem lugar a uma nova realidade. Sob eventos cíclicos ou lineares, as coisas, os seres e mesmo os deuses permaneceriam sujeitos à fatalidade, à vontade do cego e inexorável Destino.

Já no plano filosófico, inaugurando a era da “morte de Deus”, Nietzsche trouxe para a imanência o elemento escatológico do niilismo. Com sua parábola do homem louco no mercado bradando “Deus morreu! Deus permanece morto!”, o filósofo do martelo – um tipo de profeta secular e fenomenólogo certeiro – ao arremessar seu martelo esmiuçador até mesmo nos píncaros da transcendência, pretendera vaticinar o colapso das grandes estruturas da civilização ocidental. Assim, moral cristã, metafísica, ciência e a própria filosofia, na voz nietzscheana, fitaram o abismo cara a cara. “Naturalmente”, pondera George Siegmund em O Ateísmo Moderno – História e Psicanálise, “com o desmoronamento da fé em Deus desaba também todo o chão sobre o qual até então descansavam os valores; o abismo do niilismo que se abre ameaça tragar tudo [...]. O homem viajante perde assim toda a meta, todo o caminho; vê-se cercado pela noite purpúrea da loucura”. 

Ainda em tempos de grande luz no campo do saber, os cientistas descrevem cenários nada promissores, imagens do fim que lançam sombras sobre o nosso planeta e o Universo. Livros e revistas populares de divulgação científica estão cheios de “profecias” acerca da consumação de todas as coisas, a exemplo de O Fim da Terra e do Céu: O apocalipse na ciência e na religião, obra na qual o físico brasileiro Marcelo Gleiser expõe, numa linguagem meio romanceada e quase religiosa, que “o fim está próximo!” e “os céus estão caindo”. Afinal, não foi o grande cientista Stephen Hawking quem declarou: “Apesar de serem baixas as possibilidades de um desastre no planeta Terra em um ano qualquer, isso vai se acumulando com o tempo e se transforma em uma quase certeza para os próximos mil ou dez mil anos”? Seja na concepção científica materialista ou na crença hindu do Bhagavad Gita, ecoa a voz escatológica: “Eu sou o Tempo, o grande destruidor.”

Tratando-se da cosmovisão cristã, a escatologia assume proporções tão grandes que só pode ser apresentada por meio de símbolos, metáforas e representações apocalípticas. Os sinais do Armagedom - “a guerra das guerras” - anunciam o fim de tudo não por causa de colisões cósmicas, morte térmica do Universo ou algo parecido. O eskhaton, no pensamento e profecia bíblicos, acontece em razão da direta interferência divina na História: imperiosa necessidade e única solução para os dramas humanos globais, pois “os ecologistas observam a desintegração de nosso planeta, mas parece que ninguém está disposto a fazer alguma coisa a respeito. Os economistas não conseguem superar seu pessimismo. O desemprego mundial está crescendo. Parte da população do mundo enfrenta o perigo real de morrer de fome. É claro, estamos simplesmente acostumados demais com esses números; eles já não nos incomodam mais. [...] A situação política repousa em solo instável. A paz é de fato um objetivo quando os poderes mundiais se reúnem. Mas as armas continuam debaixo da massa de tratados e organizações. Vivemos à sombra de nuvens atômicas. Não há país que, de alguma forma, não esteja envolvido em algum tipo de conflito. Todas as ações políticas têm repercussão no cenário internacional. Quanto ao estado moral da nossa sociedade, é quase irreconhecível, tão desfigurado se tornou pelo crime, violência, drogas, álcool e doenças. Ninguém é poupado, pois essa condição afeta todos os níveis da sociedade. Simultaneamente, tem surgido uma nova raça de homens e mulheres: os profissionais de sucesso. Quaisquer que tenham sido os nossos ideais artísticos e morais, eles foram substituídos pelo ideal da nossa sociedade, o único pelo qual vale a pena lutar: o dinheiro. A virtude agora é proporcional ao desempenho. A humanidade contemporânea deseja, com todas as forças, se tornar cada vez mais eficaz e cada vez menos humana. Nossa civilização incita os piores desastres, mas ainda assim estamos sãos e salvos. Ainda andamos pelas ruas de nossas cidades. A televisão ainda sussurra as palavras e imagens encorajadoras de nossa prosperidade; e se isso não acontece, não haveria problema, pois seria só um filme mesmo! Nós reciclamos. Fazemos exercícios. Fechamos os olhos e meditamos, recusando enfrentar a lenta putrefação de nossa sociedade decadente e preferindo ignorar os slogans de uns poucos excêntricos. Afinal de contas, todos os nossos líderes falam de uma forma que tranquiliza , e o povo acaba pegando no sono. E as flores do mal germinam por todos os lados. [...] Não há terra, não há ilha, não há tribo remota que possa escapar. É um verdadeiro ‘tempo de angústia’.”

Parece que nos achamos perante o dobre de finados da história; contudo, para o teólogo cristão, “a cortina não desce na tragédia”. Embora o próprio Jesus tenha discursado escatologicamente ao afirmar que “os homens desmaiarão de terror, apreensivos com o que estará sobrevindo ao mundo”, Ele conclui em tom de esperança: “Quando começarem a acontecer estas coisas, levantem-se e ergam a cabeça, porque estará próxima a redenção de vocês” (Lucas 21:26, 28). Em síntese, arrisco afirmar, sob pena de ser considerado supersticiosamente religioso, que somos seres com uma fixação pelo fim. Nossa natureza mortal e o peso da finitude geram e desenvolvem em nós esse sentimento escatológico.

Numa longa entrevista transformada em livro, respondendo à pergunta que lhe fora feita, o filósofo alemão Martin Heidegger asseverou: “A filosofia não pode provocar nenhuma alteração imediata do atual estado do mundo. Isso não é válido apenas em relação à filosofia, mas também a todas as meditações e anseios meramente humanos. Já só um deus nos pode ainda salvar.” Otimistas ou pessimistas, teístas ou não, somos todos escatológicos. Imbuídos de tal sensação, a perspectiva da esperança apoiada em Deus faz toda a diferença.

Frank de Souza Mangabeira