segunda-feira, fevereiro 25, 2019

Podemos confiar nas traduções bíblicas?


Ao ler a Bíblia, corremos o risco de entender errado seus ensinamentos por vários motivos. Se não cremos nela, tentaremos entender tudo da pior forma possível e concluiremos que ela está cheia de contradições e absurdos. Se cremos na Bíblia, mas temos várias ideias pré-concebidas sobre o que ela ensina, tenderemos a prestar atenção às passagens que parecem confirmar essas ideias e a ignorar as que a ponderam. Na verdade, isso ocorre na forma como tendemos a lidar com evidências também. Basta observar os intelectuais que dizem não haver a menor sombra de evidência da existência de Deus, quando existem teoremas que provam que Ele existe.

Diante desse quadro, precisamos tomar cuidado para não deixar nossa teologia obscurecer o que os textos realmente dizem. Ou, no caso mais geral, obscurecer nossa atenção às evidências. Quando estudamos a Bíblia, precisamos levar a sério a opinião dos profissionais que trabalham nas traduções. A opinião de quem é da área tem muito mais peso do que as demais. Ainda assim, há espaço para conferir as coisas. Quando falo algo nas áreas que domino, gosto muito quando as pessoas vão além do que eu disse e se aprofundam no assunto. Um teólogo pode questionar uma tradução por causa de uma preferência de interpretação.

Por outro lado, eu gostaria de defender um pouco os teólogos. Ao trabalhar em ambientes multidisciplinares e ao observar artigos de pesquisadores de outras áreas, de vez em quando vejo colocações claramente equivocadas. Mas como é possível ver que a colocação de um especialista de outra área é equivocada? Primeiro, existe certa arbitrariedade na delimitação de áreas. Existem métodos válidos em todas elas, existem métodos que só funcionam em um contexto restrito e outros que funcionam mais ou menos no mesmo contexto restrito, mas vão mais longe em alguma direção. São como mapas: um mostra apenas um bairro, outro mostra aquele bairro e partes de bairros vizinhos, outro mostra a cidade toda, mas com menos detalhes, outro mostra a cidade inteira com muito mais detalhes, mas é enorme e mais difícil de manipular, e assim por diante. É muito interessante comparar esses mapas, até porque isso nos dá uma perspectiva mais realista e detalhada das coisas.

Melhor do que só comparar mapas é conferir os mapas indo aos locais mapeados, especialmente nas fronteiras, para ter uma ideia do que está além deles. Isso é algo que gosto muito de fazer. Mas cada um de nós tende a se especializar em um mapa. E circula por aí uma versão ultra simplificada desse mapa que frequentemente é usada por pesquisadores de outras áreas.

Pois bem, nesses passeios por mapas e territórios reais (continuo falando figuradamente de áreas do conhecimento), de vez em quando encontro erros: uma rua mapeada que não existe na realidade, uma que existe, mas não aparece no mapa, uma avenida com ângulo errado em um dos mapas, e assim por diante. Às vezes, o especialista em um bairro não nota o ângulo errado com que representa a avenida porque não está preocupado em encaixá-la no mapa vizinho. Se observasse o mapa vizinho, veria que aquela avenida não pode chegar à fronteira do seu bairro naquele ponto

Eis um exemplo: em um livro-texto de Bioquímica, bastante respeitado e usado em cursos de pós-graduação, foi dito que a quebra da molécula de ATP libera energia. Essa é uma afirmação falsa feita por profissionais da área a respeito de algo em sua própria área de conhecimento. Só que isso viola leis físicas que eles parecem não conhecer. O que ocorre de fato é que a quebra de ATP consome energia, mas gera radicais que se combinam rapidamente com moléculas do seu ambiente e essa combinação libera muito mais energia do que a quebra do ATP consumiu. No fim, fica a impressão de que a energia veio da quebra da molécula, o que em si seria um absurdo do ponto de vista físico.

Assim também ocorre com traduções. Às vezes, o conhecimento da época permite mais de uma tradução para uma expressão, uma parece mais provável, é usada e fica como precedente que será consultado pelos futuros tradutores. Um conhecimento prático de Hermenêutica Bíblica (ou Arqueologia, ou Física, etc.) às vezes deixa evidente que determinada tradução não faz sentido ou é improvável, ainda que linguisticamente pareça a melhor.

Cito dois exemplos:

Lucas 24:43: “‘μήν ⸂σοι λέγω⸃ σήμερον μετʼ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ.” Essa frase é ambígua. A escolha usual entre tradutores é: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.” Mas isso é improvável hermeneuticamente em função de muitas outras passagens bíblicas, inclusive o que Jesus disse no domingo, que ainda não tinha subido ao Pai.

Hebreus 11:3: “πίστει νοοῦμεν κατηρτίσθαι τοὺς αἰῶνας ῥήματι θεοῦ.” Essa frase praticamente não é ambígua. Ela diz que Deus construiu o tempo. Mas isso não fez sentido para os tradutores por causa de sua falta de conhecimento de Física. Muitos traduzem isso da seguinte maneira: “Pela fé, entendemos que os mundos foram criados pela palavra de Deus.” A palavra traduzida por “mundos” aqui não tem nenhuma conotação nesse sentido em grego, em nenhuma circunstância que eu já tenha visto. Essa simplesmente não é uma das traduções possíveis. Mas é extremamente popular. De onde saiu isso? Há expressões no Novo Testamento que falam da presente era, a era do pecado, como 2 Timóteo 4:9, por exemplo: “Δημᾶς γάρ με ⸀ἐγκατέλιπεν ἀγαπήσας τὸν νῦν αἰῶνα...” A expressão “νῦν αἰῶνα” refere-se à era atual, mas é traduzida muitas vezes por “este mundo”. Nesse contexto, até faz sentido uma tradução assim. O problema é que esse tipo de uso treina a mente das pessoas para imaginar que “αἰῶνας” pode significar mundos. Nesse ponto em particular, a ISV 2.0 é mais fiel: “By faith we understand that time was created by the word of God...” Mas é raro encontrarmos uma tradução assim.

Moral da história: é interessante levar muito a sério as opiniões dos profissionais da área, mas é muito melhor pesquisar os assuntos importantes da forma mais profunda possível e, de preferência, conversar sobre seus achados com profissionais.

Eduardo Lütz