segunda-feira, março 11, 2019

Aprender com o terraplanismo?


Está disponível no Netflix o documentário “A Terra é Plana”, que merece ser visto por educadores e por todos os que se preocupam com o ataque crescente, em pleno século 21, ao pensamento científico. O mérito maior do filme é que seu principal objetivo não é ridicularizar personagens que acreditam numa teoria bizarra, mas sim entender as razões que levam um grupo de pessoas a contestar um conhecimento científico tão consolidado quanto o formato esférico do planeta. Uma das características dos personagens do documentário é que não são ignorantes no sentido original da palavra. Nenhum deles é astrônomo, mas tiveram aulas de ciências na escola (um dos retratados é inclusive engenheiro), se formaram, e vivem suas vidas normais. Em comum a eles está o fato de terem maior propensão a acreditar em teorias da conspiração, como, por exemplo, as de que o 11 de Setembro, a viagem do homem à Lua ou o Holocausto são farsas. Alguns ganharam certo status de celebridade ao exporem suas ideias no YouTube, em vídeos que são vistos hoje por milhões de pessoas.

Um dos fenômenos psicológicos citados por cientistas no filme para explicar por que pessoas sem especialização num assunto se julgam mais capazes do que especialistas no tema é o efeito Dunning-Kruger. Num estudo publicado em 1999, os pesquisadores Justin Kruger e David Dunning, ambos da Universidade Cornell, aplicaram testes de variados temas e depois pediram aos participantes para estimarem seu desempenho nos exames em comparação com a média.

Os autores confirmaram primeiro que, em geral, temos a tendência de superestimar nossa habilidade ou conhecimento sobre algum assunto. Essa superioridade ilusória, no entanto, foi muito maior entre os indivíduos de pior desempenho nos testes. Para os pesquisadores, isso faz com que essas pessoas tenham mais dificuldade de admitir sua incompetência no assunto, levando-as a fazer escolhas ruins a partir de conclusões próprias equivocadas, descartando a opinião ou evidência apresentada por pessoas ou fontes mais qualificadas. No outro extremo, os autores identificaram que, quanto maior o conhecimento sobre um assunto, mais conscientes são as pessoas sobre a limitação de suas habilidades.

Outro fenômeno citado é o viés de confirmação, ou seja, nossa tendência de buscar confirmar aquilo em que acreditamos e rejeitar evidências, mesmo quando sólidas, que não estejam em acordo com nossas ideias pré-concebidas. E o filme mostra também o quanto é difícil, pelo alto custo social envolvido, pessoas mudarem de opinião ou admitirem que estão equivocadas uma vez que façam parte de um grupo que comunga as mesmas crenças.

Os cientistas ouvidos no documentário defendem que a pior maneira de combater o negacionismo é isolar e ridicularizar esses grupos, assumindo uma postura de arrogância científica. “É difícil não olhar essas pessoas com desprezo e concluir que o melhor jeito de fazê-las mudarem de opinião é pela vergonha. É o mesmo que dizer que se uma criança não entende uma matéria, é culpa dela. Mas talvez você simplesmente não desenvolveu empatia suficiente para entender por que eles não entendem”, afirma o cientista Spiros Michalakis, no filme.

O argumento central do documentário não é alertar para um suposto risco de o terraplanismo passar a ser a explicação mais aceita pela maioria da população. A questão é que esses mesmos mecanismos que levam pessoas a acreditarem numa teoria tão absurda também explicam por que há grupos com capacidade de influência política fazendo campanhas contra a vacinação de crianças, o ensino da teoria da evolução, ou contestando a evidência científica de que vivemos um processo de aquecimento global agravado pelo impacto da atividade humana na Terra.

(Antônio Gois, O Globo)

Nota 1: De fato, o documentário da Netflix é bem interessante. Mas o que devemos analisar com atenção no texto acima é o balaio de gato que se cria com ideias variadas, colocadas todas no mesmo patamar (releia o último parágrafo). Criacionistas verdadeiros, se posso dizer assim, valorizam a boa ciência (que está de acordo com a Bíblia Sagrada). Não são contra a vacinação de crianças, pois entendem que Deus nos dotou de inteligência para minorar as mazelas deste mundo de pecado. E admitem que possa haver um aquecimento global, embora não deixem de perceber que há interesses escusos por trás dessa bandeira ecológica. Também não são necessariamente contra o ensino da teoria da evolução; o que defendem é um ensino crítico dessa estrutura conceitual. O problema é que a opinião pública está sendo levada a associar criacionismo com terraplanismo, e isso é grave. Defender a criação da vida na Terra em seis dias literais de 24 horas e a historicidade dos primeiros capítulos de Gênesis já é bastante difícil em um mundo cético, anticristão e relativista; agora imagine se a confusão ficar estabelecida e as pessoas em geral pensarem que criacionistas são terraplanistas... Aí, sim, nossos esforços serão elevados à enésima potência e teremos que gastar tempo e energia para desfazer mal-entendidos. Um tempo que poderia ser mais bem aproveitado para divulgar a verdade essencial para o nosso tempo. Situação lamentável e orquestrada a gente sabe por quem. [MB]

Nota 2: Vi na semana passada o documentário da Terra plana no Netflix e verifiquei algumas questões bem interessantes (ou hilárias?) que foram apresentadas. Em certo momento do vídeo o apresentador vai a um monte e aponta a cidade e Seattle lá longe. E diz: “Eles têm a matemática... nós temos isto. Não deveríamos ver a cidade de Seatlle desta distância.” Primeiro que ele não fala a sua localização nem a distância de medição. Eu diria que ele está em Blake Island. Esse ponto fica mais ou menos a 13 ou 14 km daqueles prédios. Se ele estiver um pouco mais longe, deve ser Manchester, mas acho improvável por causa do que se vê ao redor. Se estiver em Manchester, são uns 16 km. Vou optar por este porque é o que mais favorece o argumento dele. Quanto se espera que a curvatura da água se erga a meio caminho de uma distância de 16 km entre o observador e um ponto que ele observa, geometricamente, sem levar em conta a refração da luz (efeito de lente)? Dá para deduzir a fórmula com trigonometria do ensino médio: H = (1-cos(d/(2R)))R, sendo “d” a distância entre o observador e o objeto, “R” o raio da Terra e “H” a altura da água a meio caminho. Resultado, neste caso: 5 m. Como estamos observando objetos com centenas de metros de altura (1201 Third Avenue tem 235,31 m de altura, e mesmo sua base está bem acima do nível do lago), 5 m não fazem diferença. Não é possível nem notar um tamanho minúsculo como esse. [EL/AK]